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sábado, 28 de janeiro de 2023

O TI BOLAS E O ALMOÇO NA CHANCANA.

 O TI BOLAS E O ALMOÇO NA CHANCANA.


Os tempos eram outros, os recursos naturais na maioria das vezes eram uma forma de amenizar as dificuldades do dia a dia, a caça na altura praticada por muito poucos, era muitas vezes uma forma de pôr carne na mesa e quando o excedente existia vendia-se aos vizinhos ou trocava-se por outros bens.
Daquilo que me recordo desses tempos e apesar dos mais distintos processos de captura existia uma enorme abundancia de todas as espécies, não só de caça menor (Coelhos, Lebres, Perdizes, Rolas, Tordos, Pombos e etc.) mas também de toda a espécie de passarada, guardo na memória os enormes bandos de Calhandras e Trigueirões na altura das sementeiras, ou as Abibes na altura dos alqueives, sem esquecer os Tordos, os Melros, os Papos Amarelos e os Pardais do Mato no tempo da azeitona.
As máquinas agrícolas eram quase inexistentes e todo o trabalho agrícola desde a preparação dos solos às sementeiras, às colheitas e debulha tudo era feito com bestas e à mão.
O Ti Bolas algumas vezes assalariado nas grandes herdades outras seareiro por conta própria, andava esse ano fazendo a sementeira com a ajuda da sua parelha de machos detrás da serra dos Motrinos, na Herdade da Chancana. Era prática comum nesse tempo meia dúzia de armadilhas e era caçada certa. Vendo os enormes bandos de Calhandras, Cotovias e Trigueirões e na esperança de caçada fácil, recomendou o Ti Bolas á senhora sua esposa ó Maria!! Para amanhã não precisas de mandar nada para o almoço, manda-me só aí umas pedras de sal num talego que eu levo as armadilhas e apanho uns pássaros para o almoço.
Quis o acaso que no outro dia e apesar de ter amanhecido bonito logo ás primeiras horas da manhã levantou-se um gélido e forte vento norte que não havia pássaro que parasse por aquelas bandas, chegou-se a hora do almoço e pássaros nada, olhando o céu e á passagem de um altíssimo bando de Calhandras cheio de fome mas resignado comentava para si o Bolas, OLHA LÁ ONDE VAI O MEU ALMOÇO!!!!.



terça-feira, 10 de janeiro de 2023

MEMÓRIAS DO GUADIANA

 MEMÓRIAS DO GUADIANA





São inúmeras as vezes, que já aqui referi em anteriores textos, a relação de proximidade, que todas estas povoações ribeirinhas, tinham com o Guadiana. No caso da Freguesia de Monsaraz, essa relação era transversal a todas as aldeias, sendo no entanto mais forte, em função da menor distância, a que estas se encontravam do rio, Ferragudo Telheiro e Monsaraz, eram aquelas que sentiam que do Calvinos ao Mendonça era o seu pedaço de rio.
Muitas são as memórias desse rio e desses tempos, memórias de alegria, de tristezas e algumas de um misto de sentimentos, que ainda hoje a mente teima em não querer recordar.
Não sei ao certo quantos anos teríamos, mas há muito que a puberdade tinha ficado para trás, seriamos talvez mocetões de 18 ou 19 anos.
Os invernos eram mais chuvosos e os ribeiros alimentavam o Guadiana com um caudal bastante forte até ao início do verão. O Guadiana era vida feita de ciclos e para trás tinham ficado as grandes cheias com a fertilização das margens e a subida das bogas pelos ribeiros, fazendo de Março e Abril, os meses da desova do Barbo, que consequentemente traziam ás cascalheiras, a jusante do Gato, uma abundância enorme de peixes, qualquer método de pesca era eficaz, recordo o saudoso Joaquim Cardoso, que quando pescávamos à linha na cascalheira do Gato, sempre metia dois anzois na ponta da linha, quando caía o primeiro sempre comentava! Um já lá está agora é só esperar que caia o outro, a abundância era de tal ordem, que era normal cada anzol trazer um peixe. Era a época da Tarrafa (rede de pesca) bastava deixar anoitecer e duas ou três tarrafadas na cascalheira era cesto cheio, foi numa dessas noites de pesca, que apanhei o maior susto da minha vida, e que mantive em segredo até quase aos dias de hoje e que a mente continua a ter medo de recordar.
Os barbos andam malucos! Logo a noite devíamos ir a eles! Dizia-me o Zip (alcunha do Joaquim Inácio), a reposta era quase sempre a mesma. VAMOS! Desta vez além do Zip e Eu levámos também o ti Miguel Latoeiro (pai do Zip) tendo em consideração que o Zip era o mais novo dos irmãos à época o Ti Miguel seria homem a rondar os 60 anos, já não me recordo como fizemos o percurso até ao moinho do Gato, mas provavelmente de motorizada, chegamos ao rio e havia que transpo-lo para o lado da cascalheira, que ficava do lado de Mourão. Não me recordo de quem era o barco, se do ti Joaquim Peixeiro ou do Paulino, mas havia sempre a montante do açude junto ao moinho um barco típico do Guadiana, que independentemente de quem fosse o dono, era chegar e utilizar, dado que nessa época quem por aqui deambulava era tudo gente conhecida. Atarrafas, lanternas e cestos para o peixe tudo dentro do barco e lá vamos nós na expetativa de uma boa pescaria, tanto eu como o Zip apesar de mocetões, mas por via das circunstâncias e proximidade com o rio éramos barqueiros experimentados, todos sabíamos que o açude do Gato tinha um enorme rombo que com o caudal que se fazia sentir tudo sugava com uma força aterradora, projetando toda a sua ira nas rochas a jusante do referido buraco.
Atravessar o rio a partir do moinho do Gato, pressupunha subir perpendicularmente junto a margem, 100 ou 200 m metros e só depois atravessar. Teimosia de velhos quis o Ti Miguel esse dia levar ele o barco, a noite estava escura como breu, mesmo com as lanternas o campo de visão não ultrapassaria 15 ou 20 metros. Ti Miguel olhe que tem que subir junto a margem e só depois atravessar se não, a força do rombo arrasta-nos! Recomendava eu. Está bem! Está bem! Dizia o Ti Miguel com a convicção de que naquela idade já se sabe tudo. Não sabemos ao certo se não subiu o suficiente, ou por deficiente forma de remar, foi o barco perigosamente e sem que nos déssemos conta, aproximando do rombo do açude, persentindo que algo não estava bem e, porque já era audível o assustador sussurro das águas, acendemos as lanternas e assolou-nos um tremendo calafrio, estávamos a escassos metros de uma morte certa, de onde o Ti Miguel já não nos conseguia tirar, de um gesto vigoroso e enérgico, próprio de quem sabe que está a 5 ou 6 segundos de uma enorme tragédia, o Zip derrubou literalmente o Ti Miguel do banco do remador e com o vigor próprio da juventude, lutou desesperadamente durante algum tempo, para tirar o barco daquela situação, a força exercida pelos remos, era igual à força da corrente e o barco mantinha-se estático, como flutuando entre a vida e a morte, vieram há memoria os pais, as namoradas e toda uma vida que ficava por viver, quiz Deus ou alguma força divina, que após estes angustiantes minutos o barco saísse daquela situação.
Não sei se o Zip já contou a alguém, mas subconscientemente, fizemos um pacto de silêncio, que só hoje, passados mais de 50 anos conseguimos falar do assunto. Mesmo assim, tenho SAUDADES DO GUADIANA.