História da Vila de Monsaraz
Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645)
O ano de 1645 foi fértil em acontecimentos bélicos na
província do Alentejo, desde a frustrada intenção do 2º Conde de Castelo Melhor
de tomar Badajoz, passando pelas investidas do exército espanhol sob o comando
do Marquês de Leganés, até ao episódio, já diversas vezes tratado neste blog,
do desastre de Alcaraviça (aqui, aqui, e aqui). No
entanto, um dos pequenos casos de guerra que ocorreram nesse ano passou quase
despercebido. Nem o minucioso Conde de Ericeira lhe faz referência na História de Portugal Restaurado (embora não lhe
tenha escapado sequer a presença no exército do Alentejo, nesse ano de 1645, do
rei das ilhas Maldivas, senhor de grande riqueza e muitos vassalos no Estado da
Índia, que tinha vindo a Portugal pedir auxílio a D. João IV para retomar o
trono que um seu irmão lhe havia usurpado, e que entretanto decidira servir
algum tempo no exército daquela província, com honras de oficial superior).
O episódio de menor envergadura a que me reporto é uma
entrada da cavalaria espanhola na zona de Monsaraz, que acabou por colocar em
alvoroço a própria população de Évora. Sobre este acontecimento da pequena
guerra de fronteira existem quatro referências manuscritas que se completam.
Três foram produzidas por portugueses, ao jeito das habituais “Relações” do
período. A primeira, da qual se inicia aqui a transcrição, respeita à entrada
propriamente dita. A segunda reporta o acontecido em Évora após terem chegado
as novas da incursão. E a terceira é a cópia de uma carta remetida de Mourão,
acerca da entrada do inimigos nos campos da região. E a quarta é outra cópia,
esta em castelhano, de uma carta do tenente-general D. Gregório Ortis de Ibarra
para o general da cavalaria Marquês de Molinguen, dando conta do sucedido na
operação.
Nada do que aqui se irá apresentar foi alguma vez
publicado, tendo eu tomado conhecimento deste episódio esquecido da guerra de
fronteira através de um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Madrid,
cuja cópia em boa hora me foi enviada pelo estimado amigo Julián García Blanco,
a quem muito agradeço.
A transcrição do original manuscrito foi vertida para
português corrente.
Relação da entrada dos Castelhanos no termo de
Monsaraz
Em 28 deste mês de Setembro, véspera do bem-aventurado
Arcanjo S. Miguel, vieram à coutada desta vila seis corredores castelhanos, e
nela cativaram três homens nossos e os levaram. Veio logo recado a esta praça,
saíram dela doze homens nossos em éguas, que foram em busca sua até muito além
de Cheles; e foi Deus servido que errassem a trilha, porque fora sua perdição
se lha acharam, porque haviam de segui-la até se meter no poder do inimigo. Os
voltadores [sic] castelhanos com os prisioneiros foram ao da
Lapa, aonde acharam muita gente de cavalo, mui luzida, com muitas couras
guarnecidas de ouro e prata, e bandas de custo, e muito gentis cavalos; e é
certo que era a melhor cavalaria escolhida, a que tem o inimigo em Badajoz.
Dizem que eram seiscentos cavalos; e há outros que afirmam que era maior
número. Com a confissão que fizeram os cativos se puseram logo a caminho para o
termo desta vila, de modo que, quando amanheceu, estavam metidos dentro nele.
Em S. Pedro do Corval deixaram uma tropa e foram repartindo outras pela terra
dentro, e punham-nas em partes altas e descobertas, porque seus corredores fossem
saqueando e ajuntando o gado, o que fizeram com grande cuidado, roubando a
maior parte das casas do termo; porque o fizeram quase a toda a freguesia de S.
Pedro, e na de Caridade lhes ficou muito pouco, e ainda tocaram na das
Vidigueiras, e no termo de Évora e Montoito, usando de crueldades em razão dos
roubos, porque despiam a toda a mulher que achavam com bom vestido, e pelo
conseguinte a homens e meninos. Mataram duas ou três pessoas sem pelejarem e
feriram poucas mais. Em três ou quatro montes se fizeram os nossos moradores do
termo fortes e ficaram livres. A mesma sorte teve a aldeia do Reguengo de
Baixo, porque de umas trincheiras que tem, com poucos defensores que ali se
acharam, os detiveram e fizeram retirar. Da mesma maneira se houve o Licenciado
Paulo Duarte, que com alguma gente que se lhe ajuntou, se defendeu do inimigo,
e fez que não chegasse à igreja e aldeia que ali está. Diferente a tiveram as
aldeias do Reguengo de Cima e a do Mato, que as entraram e saquearam, e todos
os mais montes que há por aquela banda, donde roubaram muita quantidade de
roupa, fato e algum dinheiro, e até na igreja de S. Pedro entraram e despiram
as imagens da Virgem Nossa Senhora do Rosário, e Conceição, deixando-as no chão
como se foram hereges.
Depois de ajuntarem todo o gado vacum que por ali
havia, que era muito muito [sic], e cabras e porcos que também era
muita quantidade, se vieram recolhendo para S. Pedro, aonde se ajuntaram todos,
e vieram marchando pela estrada que vem de Évora para esta vila.
No dia do glorioso Arcanjo S. Miguel, pela manhã,
chegou a esta vila nova [ou seja, notícia] onde estava o
inimigo, mas muito diferente na quantidade do que era, porque diziam que seriam
150 homens de cavalo. Ordenou logo o capitão-mor Luís Álvares Baines que lhe
saísse desta vila gente; para o que se ofereceu logo o capitão António Pereira
de Oliveira, que foi com a que havia, acompanhado dos alferes Gaspar Grisante,
Rafael Segurado e Miguel Gomes de Sampaio, com o sargento da companhia do dito
capitão, Francisco Mendes Couto, e os sargentos Simão Lopes e Diogo Mendes. E
assim se foram [a] caminho da serra da Atalaia. Seriam pouco mais de oitenta
infantes, com dezassete homens de éguas que aqui estavam.
Boa parte das terras que no século XVII serviram de
palco à incursão que aqui é relatada estão hoje submersas, devido à construção
da barragem do Alqueva, como se pode verificar pela imagem retirada do Google
Earth que acima se reproduz. Mas retornemos à narrativa, interrompida no
momento em que 80 infantes e 17 cavaleiros da ordenança montados em éguas
saíram de Monsaraz.
Se foram detrás da serra de Gaspar Dias, aonde
estiveram com determinação de esperar o inimigo (se por ali viesse). Depois de
um bom espaço de tempo se tornaram todos a subir a serra, porque lhe chegou um
corredor nosso novo, que o inimigo vinha marchando pela estrada de Évora para
passar entre a serra e as vinhas e que eram muitos, no que se certificaram com
a vista e temeram com muita razão, porque vinham cinco ou seis castelhanos para
cada infante nosso. E assim se foram retirando pelo cume da serra para pé da
atalaia, aonde fizeram alto, e ouviu-se uma voz de um soldado bisonho, e disse
“senhores, o poder do inimigo é muito grande, mostremo-nos neste alto
espalhados para que pareçamos muitos”, o que se executou com tão bom acerto que
foi total perdição do inimigo e remédio nosso. Neste tempo vinha o inimigo
passando pelo Monte do Duque com três tropas de vanguarda e seus corredores
diante, e contra o Monte do Azevel e a aldeia dos Motrinos. Fizeram alto as
três tropas, aonde estiveram grande espaço de tempo indecisos, porque seus
corredores lhe levaram a nova que haviam visto da aldeia (onde haviam estado)
muita gente na serra e ao pé da atalaia que era nossa. Na detença que fizeram
deviam de mandar aviso às quatro tropas que vinham de retaguarda na acumada do
Monte do Duque, donde pareciam os campos cobertos de gado, que era muito.
Deviam tomar resolução de virarem com temor da nossa gente, parecendo-lhe que
era muita e que seria ali vinda de Olivença, porque perguntavam a um
prisioneiro quantas léguas havia daqui àquela praça; e dada a resposta pelo
prisioneiro, viraram todo o gado e a cavalaria pela de Mísia Nunes, e pelo
Barrocal da Morgada, e Santa Margarida, vindo sair ao Monte do Caminho e ao de Gaspar
Pereira, aonde chegaram Baltasar Limpo, Manuel Tenreiro e Fernão Rodrigues e o
Garção, e o João Nunes e o Tourillo, e Diogo Mendes dos Abandeiros, soldados de
cavalo da ordenança desta vila e termo, que iam em seguimento do inimigo. E no
dito Monte de Gaspar Pereira tiveram um[a] gentil escaramuça com uma pouca de
gente que ali estava, dando-se muito boas cargas por espaço de muito tempo, e
saíram também os castelhanos a dar-lhas, até que largaram o posto e se foram
seguindo os mais, e não pararam ainda aqui porque se foram [a]trás [d]eles, e
nas matas tiveram outra mais travada. E é certo que os desviaram da adega e
horta do Licenciado Marcos Esteves, sendo os castelhanos mais de vinte e os
nossos os sobreditos.
Os nossos da serra, vendo o muito poder do inimigo,
estavam perplexos, sem saberem o que haviam de fazer na parada que o inimigo
fez à vista deles. Disse então um dos mais atentados soldados dos nossos,
que era grande temeridade estarem ali com tão pouca gente, porque se o inimigo
se resolvesse a vir por aquela parte e os [a]cometesse, que mal lhe poderiam
resistir. Que o acerto era com grande brevidade retirarem-se para a vila,
porque ficaria nela muito pouca gente, e que poderiam lá ser necessários. O
capitão António Pereira de Oliveira, parecendo-lhe bem o conselho, despachou
logo um de cavalo ao capitão-mor, dando-lhe conta do poder que era muito
superior ao nosso, que se lhe parecesse retirarem-se para a vila o fariam.
Partido este recado, viram que o inimigo virava para baixo, e sem esperarem
resposta do capitão-mor se veio a nossa infantaria, com alguns de cavalo, pelo
caminho da vila, e dela mandou segundo recado o dito capitão ao capitão-mor,
que o inimigo ia virado para passar o rio de Guadiana por baixo desta vila, que
lhe desse sua mercê licença para vir ocupar um porto, por onde se entendia
havia de passar o inimigo. E logo, sem esperar resposta, se pôs a caminho com
grandíssima pressa por chegar ao dito porto primeiro que o inimigo. E o dito
capitão-mor lhe mandou recado, que fosse em boa hora.
Partido o dito capitão pela outra parte da vila sem
ser visto nem sentido do inimigo, foi o dito inimigo seguindo seu caminho para
o dito porto, e encontrando a gente do Reguengo de sobressalto, todos se
espalharam cada um por onde pôde, porém logo se foram ajuntando com seu capitão
Domingos Pires Guato, e (…) se lhe ajuntou o capitão Domingos Valada com a sua
companhia das Vidigueiras, e ambos juntos vieram pelos alcances do inimigo, até
chegarem a avistá-lo junto aos Álvaros Gis, e por aquelas barrocas e partes
mais altas e ásperas o vieram seguindo sempre, [a]tirando-se-lhe alguns tiros
de mosquetes a seus corredores de retaguarda, com o que os inquietaram muito, e
assim lhe vieram seguindo os passos até o Monte do Boi, dando-lhe muito boas cargas.
Vendo-se o inimigo enfadado de os nossos o perseguirem tanto, ou por lhe fazer
algum dano, se virou com a maior parte de sua gente em tropas fechadas para os
romper, ou pôr em fugida, o que começaram a fazer alguns, que fora total
perdição de todos se o capitão Valada não metera mão à espada, dando-lhe muitas
espadeiradas e algumas feridas, ajudado do capitão Guato e do seu sargento, de
sorte que os fizeram ter, e tiveram lugar de ganhar um palanquezinho que ali
está, donde se tiveram e esperaram ao inimigo. Dando-lhe muito boas cargas o
rebateram, depois de porfiarem um bom espaço por entrarem no palanque, que todo
o tinham cercado, e como não lhe faziam bom agasalho, se foram alargando. Neste
tempo, com o tiro de uma cravina caiu um cavalo de um que andava diante, devia
de ser pessoa de porte, porque como se retirou deixando o cavalo, logo todos
largaram a pretensão e se vieram em seguimento do gado que vinha pelo Monte do
Caminho. Saindo às duas lameiras e serra do Vale de Xeres se vieram chegando ao
rio, porém o gado todo o levaram para baixo, de modo que esteve junto do Álamo,
que fica muito distante do porto por onde queriam passar. E chegando com o dito
gado ao Monte dos Mouros, dizem que tiveram vista de dois ou três homens de
cavalo nossos, e imaginando que havia gente nossa no porto de Portel, vieram
com o gado rio acima. O capitão António Pereira, tanto que chegou ao porto de
Vila Velha com a gente que levava, passou o rio da outra parte. Escolhendo um
bom posto, se puseram encobertos para que se o inimigo [a]cometesse o dito
posto, o rebater. E chegando alguns do inimigo ao dito porto, se disparou por
descuido um mosquete nosso, com que foram sentidos os nossos, de sorte que o
inimigo se começou a retirar. Contudo, aqui se lhe [a]tiraram alguns tiros de
mosquete, com que se desviaram mais depressa e fizeram alto na Cabeça Solta.
Ali deviam ter aviso, ou viram que o gado ia muito abaixo e marcharam todos
para lá, e encontrando-o, que já vinha para cima, se vieram todos em demanda do
mesmo porto, e tornaram a fazer alto na Cabeça Solta. Nesta volta que fez o
inimigo, tiveram lugar as companhias do termo, que já se lhes haviam juntado a
de S. Marcos e a de Montoito, de lhe darem algumas muito boas cargas entre o
Vale de Xeres e o Monte da Barca. E investindo aqui os nossos, guiados do
capitão Guato e Simão Lopes, com uma boa tropa que o inimigo ali tinha, lhe
fizeram largar o posto e fugir para os mais. Já aqui o inimigo vinha perdido,
porque a gente do capitão lhe ficava à retaguarda, e por diante achava o porto
por onde queria passar impedido, e assim se resolveu a mandar duas valentes
tropas, com mita gente, a passar pelo porto de Mourão, que chamam o porto de
São Gens, guiados pelo mulato Mateus, natural desta vila, cativo [ou
seja, escravo] que foi de Baltasar Limpo. Bem viu o capitão António
Pereira vir aquela gente a passar, mandou logo pôr sentinelas, por que os não
colhessem descuidados. Passado o inimigo da parte de além do rio, e feita uma
das tropas em duas, os acometeu no porto com grande ímpeto e fúria, imaginando
fazê-los largar o posto ou rompê-los, e com grande grita[ria] das outras
tropas que ficaram desta parte com o gado, que diziam com muito altas
vozes, para que as outras tropas que acometiam os ouvissem “cerra Espanha, cerra
Espanha”, e isto muitas vezes, querendo também cometer o posto, para que uns de
uma parte e outros de outra tomassem os nossos, que os tinham no meio, e os
rompessem ou fizessem largar o posto, para eles passarem com o gado livremente.
Mas foram as duas tropas tão bem recebidas e com tão boas cargas, que depois de
os investirem duas vezes se retiraram com perda, e vindo a outra sua tropa
muito à pressa, em socorro, se encontraram junto da igreja de Santiago que está
naquele lugar, e não sei eu que novas as duas tropas lhe deram, que todas se
retiraram ao largo, e depois voltaram sobre o porto de Mourão, aonde fizeram
alto. A outra sua gente que estava desta parte, tanto que viu o sucesso dos
seus e ouviram uns poucos tiros que alguns nossos [a]tiraram ao porto de São
Gens, logo desentenderam de tudo e largaram todo o gado e fugiram infamemente
pelo rio acima, indo sempre ao longo dele por partes por onde se não pode andar
a pé, mas que não fará o temor e necessidade.
Neste tempo tinham chegado catorze ou quinze infantes
nossos ao dito porto, e como os inimigos iam tão apressados, lhe deram suas
cargas, que os meteram em tanta confusão que se apinharam dentro na água.
Muitos passaram a nado pela garganta do pego, que se o rio levara alguma água
ocasião houve de se perderem muitos. Aqui lhe tomaram muitas cavalgaduras
carregadas de roupa e cinco cavalos seus e alguns escravos que levavam cativos,
e os prisioneiros, e assim se foram fugindo. E ao passar por Mourão lhe saiu o
tenente de Dom João de Ataíde [era o tenente Agostinho Ribeiro] com
alguns vinte cavalos que ali ficaram, a escaramuçar com eles dando-lhes cargas
e chamando-os para lhe chegar a artilharia, o que se logrou porque lhe
[a]tiraram nove peças, que lhe deram no meio das tropas e lhe mataram dois
cavalos, mas não se sabe quanta gente, porque não deixaram pessoa alguma. E
lhes perderam no nosso termo alguma gente, eu tenho alcançado que são doze
pessoas as que se acharam mortas e outras que lhe viram levar em cavalgaduras
atravessadas. E de crer é que que, em tanto distrito que se lhe foi [a]tirando,
lhe mataram muita gente, porque foram seguidos mais de légua e meia [aproximadamente
7,5 Km], e a tempos se lhes davam muito boas cargas, e é certo que levaram
muita gente ferida, e lhe ficaram muitos cavalos mortos. De um prisioneiro que
levaram até onde fizeram pouco soubemos, que toda a noite estiveram gemendo
muitos que seriam os feridos, e diz este que se achou perto donde estavam
falando uns castelhanos, e que dissera um: “mal viaje havemos echo”, e falando
outro, parece que encontrando-o [ou seja, contrariando-o], tornara
ele: “boto que nos cuesta mas de cien hombres entre muertos y heridos”, no que
se não põe dúvida, pelo bom agasalho que se lhe havia feito em todo o dia. E é
de notar que não houve da nossa parte nenhuma morte nem ferida, donde eu
entendo e creio que foi um grande milagre que Deus Nosso Senhor fez, por
intercepção do Glorioso Arcanjo São Miguel e das almas do Purgatório, cujas
festas se faziam naquele e no dia seguinte. E para que ficasse todo o louvor à
gente desta vila e termo do bom sucesso deste dia, há-de se advertir que
mando[u] o capitão-mor desta vila dois ou três recados muito a tempo ao de
Mourão; e o mesmo fez o capitão António Pereira depois de estar no rio, que lhe
mandasse algum socorro, ou lhe mandasse guarnecer algum porto; não mandou
soldado algum [o capitão-mor de Mourão], desculpando-se que tinha pouca
gente para poder mandar. E ainda que se pudera dizer que o Limpo, com os
companheiros, fizeram grande temeridade em escaramuçarem com o inimigo, não se
lhe pode negar o louvor a todos; nem menos ao capitão António Pereira que, com
tão pouca gente e mal disciplinada, se opôs a tanta cavalaria e tão luzida, que
é de crer vinha muita gente de porte nela. Em resolução todos o fizeram muito
bem e cada um melhor. Queira Deus levar muito avante este Reino, e que as armas
do nosso Rei sejam sempre vitoriosas dos nossos inimigos.
E assim termina a relação. Uma longa narrativa que
empola uma acção insignificante no contexto da guerra, mas de grande
importância para uma região que não era então das mais agitadas pelas operações
na fronteira e cuja pacatez fora quebrada de forma brusca e súbita. Essa escala
de vivência da guerra confere outra dimensão ao drama humano, quase sempre esbatido
no grande quadro das operações militares.
De realçar que Mateus Rodrigues não inclui esta
incursão nas suas memórias, apesar do documento aqui transcrito se referir
à intervenção da companhia onde o soldado servia na altura, a do
comissário geral D. João de Ataíde. Contudo, o memorialista refere, em algumas
passagens da sua obra, a região onde se desenrolou este episódio e na qual a
sua companhia esteve alojada pelo menos entre 1644-45 e 1648.
Um outro dado aparentemente menor, mas que é de
salientar, é a referência, por parte dos soldados espanhóis, ao termo “Espanha”
como grito de guerra e factor de identificação. Mais um exemplo a juntar a
vários outros que tenho vindo a pesquisar e a encontrar, e que contraria
opiniões académicas recentes e bem divulgadas (estou a lembrar-me de alguns
trabalhos do Professor António Hespanha e do Dr. Fernando Dores Costa), nas
quais se nega a ideia de “Espanha” como factor identitário por parte dos
militares de Filipe IV, apontando para a historiografia tradicional portuguesa,
nacionalista e romântica, a criação desse pretenso “mito”. Nada como investigar
a fundo as fontes primárias para corrigir mitos mais recentes – mas é essa,
mesmo, a função do historiador, cujas conclusões nunca são definitivas.
Blog de História Militar dedicado à Guerra da
Restauração ou da Aclamação, 1641-1668
Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no
termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45
v-49
O episódio da
«Passagem de Alcaraviça», 1645 – 1ª parte; artigo do Sr. Santos Manoel
Do estimado amigo e investigador
Sr. Santos Manoel recebi um muito interessante artigo,
que aqui será publicado na íntegra, em duas partes. Agradeço a gentileza do
Autor e a sua permissão para aqui partilhar o resultado da sua investigação com
os caríssimos leitores.
O episódio da «Passagem de Alcaraviça»
Entre as batalhas de Montijo – em cuja discussão sobre se vitória ou
derrota dos portugueses peço licença para não entrar, embora hoje pareça
consensual que se tratou de uma das ‘derrotas mais vitoriosamente celebradas’
dos nossos exércitos – e de Montes Claros, o conflito entre portugueses e
espanhóis por os primeiros terem reafirmado a sua independência, permaneceu em
estado pouco mais que de tensão fronteiriça, interrompida por algumas entradas
de parte a parte nos territórios alheios para causar algum dano pontual, colher
alguma glória para soldados mais sedentos desse tipo de despojo ou mesmo para o
roubo de algum mantimento, em falta crónica de ambos os lados. Esta memória
procura resgatar um desses episódios de encontros entre forças opostas nas
regiões fronteiriças, porventura um dos que os portugueses não saíram de cabeça
erguida, mas que acabou por resultar numa iniciativa de reforço do treino
militar, princípio básico da boa preparação dos exércitos.
O episódio foi citado como o ‘sucesso’ (no sentido de ‘acontecimento’,
claro está), a ‘ocasião’, o ‘desastre’ da ‘passagem’ ou da ‘rota’ de
Alcaraviça, e deu-se em data incerta entre 27 de Outubro e 2 de Novembro de
1645.
As crónicas
Na ‘História Geral de Portugal e Suas Conquistas’ de Damião A L Faria de
Castro publicado um século e meio depois, o capítulo que narra este episódio
começa com o título pouco prometedor de ‘Continuam os sucessos do Reino no ano
de 1645′, como se de uma continuação enfadonha se tratasse, e imediatamente
avança para um exórdio francamente desanimador, que não está muito longe do
parágrafo com que comecei este texto, pelo menos para o ano em questão. Diz
Faria e Castro que ‘Pouco dignos de narração dilatada são, na Província do
Alentejo, os sucessos do ano que entro a escrever’. Vejamos.
D João não sabia o que fazer para atrair para o comando das forças do
Alentejo uma mente capaz, à qual seria também bem-vindo juntar-se alguma sorte
nas armas. O Cde. de Alegrete, relator coberto de glória da meia vitória
portuguesa em Montijo, no meio de um ataque de orgulho ferido, tinha-se
demitido quando no fim de 44 D João mandou Joane Mendes de Vasconcelos para o
comando das forças em campo para libertar Elvas do sítio que lhe punha o
Marquês de Torrecusa. Agora que (por razões que ficam para outra memória …)
Joane Mendes se revelava uma escolha de difícil manutenção, D João voltava-se
para o Cde. de Castelo Melhor. De notar que do lado espanhol as coisas não
estavam diferentes. Incomodada pela pouca acção de Torrecusa, a liderança de
Castela substituiu-o pelo Marquês de Legañes, com maiores forças e bem mais
experimentadas nos campos do que é hoje o norte de Itália.
Dois novos comandos em ambos os lados da fronteira, só por si, fariam
adivinhar novos combates quanto mais não fosse para experimentar mutuamente as
têmperas e tácticas. Mas o que se segue nas discussões do Conselho de Estado e
Guerra demonstra que D João poderia estar menos interessado em apoiar arroubos
de bravura que em esperar para ver. Castelo Melhor tentara atacar Badajoz, mas
teve tantos percalços no transporte da artilharia que se atrasou, expôs os
movimentos e perdeu o elemento surpresa, abortando-se a operação. Castelo
Melhor insistia numa acção ofensiva, e com Cosmander congeminou e apresentou no
Conselho de Guerra a tomada do Forte de S. Cristóvão para melhor preparar um
ataque a Badajoz. No entanto na corte as expectativas, provavelmente baseadas
em informação que Castelo Melhor não tinha, viravam-se mais para a preparação
de defesas. A presença de um exército experimentado na fronteira, simultaneamente
com uma armada em Cádis assim o impunham.
O Conselho recusou o ataque ao forte de S. Cristóvão, próximo de Badajoz. E
o Rei sai de Lisboa.
O receio do desencadear para breve do grande ataque conjunto por terra e
mar era tal que D João chegou mesmo a nomear a 2 de Novembro de 45 a D Jorge
Mascarenhas, Marquês de Montalvão, do Conselho de Estado e Guerra, seu Vedor da
Fazenda e presidente do Conselho Ultramarino, como Mestre de Campo General
«junto à pessoa d’el Rei», uma espécie de intendência da sua segurança privada,
chefia da sua guarda pessoal.
Mas voltemos ao Alentejo, onde neste ambiente de perigo iminente está
prestes a dar-se o caso de Alcaraviça.
É um grupo das forças de Legañes que entra pelo território português até
próximo do que na altura se chamavam as Vendas de Alcaraviça, não a actual
povoação de Alcaraviça, mais a Sul, mas o que é hoje a localidade da Orada, a
Norte de Borba (curioso entretanto que nas duas descrições conhecidas e nos
documentos da época não se faça nunca referência à ermida da Srª da Orada ou à
povoação actualmente com esse nome). As Vendas de Alcaraviça ficavam à beira da
estrada ancestral entre Elvas e Estremoz, a que vem por Vila Boim e passa pela
Orada e S Lourenço de Mamporcão. A importância dessa via à época confirma-se
por ser também a que Filipe III de Espanha fez quando veio visitar Portugal,
perdendo na passagem da fronteira um ‘I’ que o seu filho voltou a encontrar. Em
23 de Março de 1619 o rei Filipe envia cartas ao presidente da câmara de Lisboa
e ao Marquês de Alenquer descrevendo o seu trajecto a partir de Elvas, onde
iria comer, onde iria dormir, quantas léguas a percorrer em cada troço, tudo
como o seu pai tinha feito quando veio a Portugal em 1581: «… A comer – de Vila
Boim às Vendas de Alcaraviça – duas léguas e meia; A dormir – destas Vendas a
Estremoz – duas léguas e meia; …». As Vendas seriam de facto isso, locais de
paragem para viajantes com venda de comida a meia jornada entre dois locais
maiores capazes para dar dormida. Pelos vistos o lote de personagens ilustres
que se refastelou com os cozinhados da Alcaraviça chegou a incluir pelo menos
dois reis castelhanos. Pena é que também tenha assistido ao sacrifício de uns
tantos bravos defensores do Reino.
A ‘História’ de Faria de Castro (Tomo 18, Livro 47, Cap. V, Ano de 1645)
narra o episódio de forma breve como a maior das pequenas acções que Legañes
executou durante o seu comando, narração quase que frustrada por um exército de
15000 homens não ter feito muito mais que tomar o forte da Ponte de Olivença e
deitar abaixo alguns arcos da dita para cortar as comunicações da praça. Diz
esse historiador que um Major (sic) João da Fonseca Barreto, tratado
pejorativamente como ‘inconsiderado’, com 400 infantes encontrou-se com um
corpo de tropas espanholas próximo à Venda de Alcaraviça. Ao invés de se
fortificar e esperar socorro da cavalaria de D Rodrigo de Castro que
supostamente o seguia, atacou, e foi destroçado.
Faria de Castro diz que o Rei sentiu essa ‘pequena desgraça’, mas foi
compensado com um acto de bravura de 15 soldados e um alferes na Atalaia da
Terrinha, que se defenderam contra 2000 infantes e 1000 cavaleiros de Castela,
tendo-se perdido alguns e salvado outros após rendição.
No ‘Portugal Restaurado’, de 1751, a narrativa de Ericeira é ligeiramente mais
desenvolvida. Os 15000 homens de Legañes eram em pormenor 12000 a pé e 3000 a
cavalo, apoiados por dez peças de artilharia.
Fica aqui atestado que o episódio da Terrinha descrito em Faria de Castro,
a ter os números por certos, contou então com nada menos que um sexto dos
infantes! e a terça parte da cavalaria inimiga!, parcela essa a necessária para
derrotar os tais 16 portugueses … As descrições dos cronistas fazem-nos
concluir que Legañes, tendo dificuldades em combater pessoas, em alternativa
virou-se para as estruturas, no caso os arcos da ponte de Olivença. Enfim,
dados os devidos descontos, continuemos com Ericeira cuja descrição segue.
Foi a 25 de Outubro que o marquês espanhol saiu com os seus 15000 de
Badajoz e chegou à vista da ponte da Ajuda, onde após dois dias de bombardeio,
tomou o forte de Stº António e o pequeno castelo da ponte, e minou-lhe os
arcos. Castelo Melhor resolveu mandar socorros a Olivença uma vez que pensava
que Legañes a queria sitiar. No entanto desde que este se instalara na zona da
ponte que toda a região ficava sob perigo de emboscadas. O terreno ondulado
permitia que corpos de tropas de dimensão considerável se movimentassem e
posicionassem nos fundos dos vales sem serem detectados, o que tornava muito
arriscada a jornada de cerca de seis léguas entre Estremoz e Elvas pela tal
estrada de visitas reais. A táctica recomendada para lidar com estas condições
de terreno seria mandar batedores pelos cabeços a verificar a presença de
tropas inimigas, avaliá-las e por conseguinte garantir a segurança do trajecto,
fosse ou não dar-se-lhes combate.
Um corpo de 400 infantes (soldados a pé) da Comarca de Évora chefiados pelo
Sargento-mor (sic) João da Fonseca Barreto sai de Estremoz e avista próximo à
Venda da Alcaraviça 600 castelhanos a cavalo que tinham saído da ponte na noite
anterior com a intenção precisa de praticar acções de emboscada na dita
estrada, que sabiam crucial para comunicações entre as duas maiores praças da
fronteira e para o abastecimento de Elvas.
Fonseca Barreto ou seria um soldado pouco experimentado e pusilânime, como
insinua Ericeira, ou apenas alguém que num dia de pouca inspiração e mau
conselho toma uma decisão errada. Ao invés de ocupar uma tapada de parapeito
alto, uma das muitas que há na zona, e guarnecê-la, parece ter dado ordem de
ataque ou de receber a carga em campo aberto. Fica para o segredo da história
se foi como insinua Ericeira ou se Barreto terá sido por sua vez surpreendido e
atacado tão rapidamente que nem teve tempo de se refugiar. O resultado foi uma
carnificina em que pereceram quase todos os soldados de infantaria da Comarca
que o acompanhavam. Ericeira também refere que ‘se’ ao menos Fonseca Barreto se
fortificasse, e ‘se’ tivesse conseguido mandar mensageiros a D Rodrigo que
vinha de Elvas para Vila Viçosa com 700 cavalos, ao que eu junto ‘se’ Barreto
estivesse informado dessa deslocação, ‘se’ o mensageiro conseguisse vencer as
duas léguas até encontrar D Rodrigo num ponto qualquer entre Elvas e Vila
Viçosa que teria obviamente de adivinhar qual seria, ‘se’ D Rodrigo saísse
imediatamente e conseguisse chegar a tempo, entre outros ‘ses’ (junte também o
seu: agora, como na época em que Ericeira escreveu, pouca diferença faz).
Terá tudo isso ficado por aí? ‘Enterrar os mortos e cuidar dos vivos’, como
sempre que se pôde se fez, bem antes de Pombal o ter glosado? Deixando os
relatos históricos e passando aos documentos, alguns Decretos do Conselho da
Guerra indicam que não. D João não deixou passar o evento em branco, e os textos
adiante permitem esclarecer alguns pontos, revelar alguns detalhes relevantes e
medir a justa importância do episódio considerado o mais relevante no quadro
geral das operações do Outono desse ano.
Imagens: Em cima, Orada (a antiga Venda de
Alcaraviça) na actualidade. Fotografia extraída do programa Google Earth. Em
baixo, reconstituição de um combate envolvendo tropas de infantaria, Kelmarsh
Hall, 2007. Foto de Jorge P. de Freitas.
O episódio da «Passagem de Alcaraviça» – 2ª parte; artigo
do Sr. Santos Manoel
Conclui-se hoje o interessante artigo
artigo do Sr. Santos Manoel, cuja publicação foi
iniciada no último post. Renovo aqui o
meus agradecimentos pela permissão concedida pelo Autor para a publicação desta
peça de investigação.
Os documentos
Como já foi dito atrás, as notícias de Cádis somadas à movimentação e
entradas de Legañes, das quais a de Alcaraviça foi de particular gravidade,
fizeram Rei e Conselho pensarem no pior, e o pior era a invasão estar iminente.
D João decreta que a Rainha ficaria em Lisboa e passaria a despachar na sua
ausência, enquanto ele passaria a Aldeia Galega do Ribatejo (o antigo nome do
Montijo), uma posição bem estudada, suficientemente próxima de Lisboa mas
dando-lhe campo aberto para começar de imediato a movimentar-se no interior do
país caso a invasão começasse.
O trajecto de D João IV durante as operações nesse último trimestre de
1645, tendo por base os locais de emissão das suas cartas e Decretos, foi
aproximadamente o seguinte:
– em 20 de Outubro ainda estava em Lisboa;
– a 27 atravessa o Tejo e parte para Aldeia Galega onde permanece pelo
menos até 10 de Novembro;
– a 19 já escreve de Montemor-o-novo onde permanece pelo menos até 7 de
Dezembro;
– em 11 já está em Setúbal inspeccionando arranjos de defesa;
– em 30 estava de regresso a Lisboa.
Quando passa o Tejo a 27 de Outubro, o episódio de Alcaraviça ainda não se
teria dado, nem saberia nada das operações de Legañes em Olivença e da tomada
da ponte uma vez que estavam a dar-se precisamente nesse dia. Nessa mesma data,
quando escreve a Martim Afonso de Melo fá-lo como um alerta porque, segundo as
informações de que podia dispor até esse dia, o inimigo depois de ter chegado a
Badajoz inesperadamente parou, não avançou mais. Esse facto continha para D
João, e na sua própria expressão, ‘algum mistério’, parecia ser um indício
sério de que Legañes apenas fazia um compasso de espera para se retemperar
enquanto a armada não se deslocasse. Estaria em marcha a mais ou menos esperada
invasão do reino, qualquer coisa parecida com o que se deu em 1580: por terra,
pelo Alentejo até Lisboa; por mar, a armada que estava em Puerto Santa Maria e
Cádis – cujas manobras e exercícios já lhe tinham sido notificadas, como prova
uma carta sua à vereação da Câmara de Lisboa de três dias depois, 30 de Outubro
– avançando até à barra do Tejo. Aldeia Galega era um bom local para se
aquartelar em caso de uma súbita ocupação naval de Lisboa, contra o quê pouco
se podia fazer. A resistência, a confirmar-se o ataque, dar-se-ia no Alentejo.
Avaliando o Rei este estado de coisas, a
4 de Novembro, ainda em Aldeia Galega, escreve a Castelo Melhor aparentemente
apenas por ter sido informado de um caso de má liderança de um capitão de uma
praça de primeira linha. Pede-lhe que apure responsabilidades e aja em
conformidade em relação ao que se passou perto de Vila Viçosa no dia 31 de
Outubro, no que parece ter sido um recontro onde a absoluta falta de comando
fez com que o capitão mandasse infantaria sem ao menos um cabo, pelo meio das
vinhas, contra cavaleiros espanhóis que exploravam os arrabaldes em ‘Fradaga’,
‘Pexinhos’ e a N. Sª da Luz. Essa operação pífia causou a morte de 15 soldados,
a captura de mais alguns e a perda de gado. Mas pior que isso, revelou que
havia movimentações bem no interior do nosso território, que havia falhas
graves de comandantes de praças onde essas falhas não podia ocorrer, e que o
facto provocou um sentimento de insegurança em Estremoz, praça que sabia que
estava no caminho do invasor para a capital. D João queria simultaneamente
sondar o que realmente se estaria a passar na fronteira, que Castelo Melhor
fizesse alguma coisa em relação aos comandos e que isso tivesse um efeito
benéfico no moral de Estremoz. Nessa carta D João dá o primeiro sinal de foi
informado de Alcaraviça: fala de outra desordem de que também foi informado.
A outra desordem
é seguramente o desastre da passagem de Alcaraviça, muito pior e mais grave,
mas difícil para nós de saber se foi anterior ou posterior ao de Vila Viçosa.
Por isso situarmo-lo vagamente na semana entre 27 de Outubro, dia do ataque à
ponte e forte de Olivença, e cerca de dois a três dias antes de D João ter
escrito a carta de dia 4 de Novembro, tempo mínimo para que a notícia chegasse
a Aldeia Galega.
No mesmo dia 4, quando pelos vistos já sabendo da dimensão do que se passou
nas Vendas de Alcaraviça, faz Conselho de Estado onde decide e envia ordem a 8
para Pedro Vieira da Silva mandar duas pessoas de qualidade às localidades de
onde eram os soldados. A missão era apoiar com ânimo e consolo, mas também com
dinheiro as famílias dos que faleceram e foram capturados, bem como com
cirurgiões os feridos que necessitassem de cuidados. Ficamos assim a saber que
a tropa da Ordenança da Comarca de Évora destroçada pelos espanhóis, contava
com um bom número de filhos de Évora, mas também de outra localidade importante
a seguir a Estremoz no caminho para Lisboa: da Vila de Arraiolos. Ficamos a
saber também que se houve feridos a precisar ser tratados, houve quem escapasse
ao massacre. Um deles não foi infelizmente Francisco Gomes de Araújo. Filho de João
Gomes de Araújo e de Catarina Jorge de Sousa (ela de Alcácer do Sal), Francisco
era um alferes de Évora que morreu no comando de uma companhia ‘na rota de
Alcaraviça’, abraçado à bandeira nacional. O alferes e o episódio da sua morte
são citados nos ‘Sanches de Vila Viçosa’, que se deu sem margem para dúvidas no
episódio de que trata nesta memória.
No dia 10 de Novembro, dois dias após a carta que ordena a transmissão dos
sentimentos reais e as ajudas materiais às vítimas e famílias, D João escreve
aos juízes, procuradores e vereadores da Câmara de Arraiolos. Alude a uma carta
que estes lhe tinham escrito no dia 4 falando do sofrimento que por ali corria
pelo que já sabiam ter acontecido à sua gente em Alcaraviça. Esta carta traz um
elemento de confirmação dos relatos históricos: o corpo de infantaria era de
facto um reforço enviado de Estremoz para Elvas. Assim, acentua-se a impressão
de que o corpo de infantaria seguia pela estrada em rota batida e pode ter sido
simplesmente emboscado pelo corpo a cavalo espanhol, não tendo tido tempo de se
defender ou fortificar-se numa tapada como rezam os cronistas.
Quase um mês depois, a 7 de Dezembro, já em Montemor-o-novo, feitas as
diligências junto das famílias e recebendo D João o retorno de informações que
entretanto foram colhidas, escreve a Castelo Melhor enviando-lhe petições de
familiares dos cativos na refrega e pede-lhe que tente obter as suas
libertações pelos meios mais convenientes. As peticionárias que solicitavam
prisioneiros espanhóis para troca e eram: D Juliana de Salgado, mulher do
Capitão Manuel da Cunha, Antónia de Azevedo, mulher do Alferes Sebastião
Rodrigues Francisco e Paula Rodrigues, de Domingos Fernandes, trabalhador. A
referência ao estatuto social do preso seria relevante para a escolha dos
prisioneiros a trocar.
A 11, D João já está em Setúbal e a 30 de Dezembro de 1645 em Lisboa. Não
se encontram mais referências ao caso até 11 de Janeiro de 46. Ignora-se que
fim teve a diligência para a troca de presos, mas nessa última data são remetidos
ao Dr. João Pinheiro uma carta de Castelo Melhor e outra do Auditor Geral do
Exército a acompanhar o dossier da investigação que se fez ao procedimento do
Sargento-mor João da Fonseca Barreto ‘quando a gente de Évora e Arraiolos foi
morta e aprisionada em Alcaraviça’. O Rei pede que lhe seja enviado o processo
para que se formule (ou não, presumo) uma acusação e que se leve a Conselho
para se sentenciar.
Ignora-se o teor da relação apresentada, o que se sentenciou sobre o caso e
o que se passou a seguir relacionado com ele. Ignora-se mesmo de João da
Fonseca Barreto pereceu com os seus ou se sobreviveu. A documentação tem os
seus limites. O investigador amador também.
Conclusão
Este episódio de guerra, triste sem
dúvida pelas vítimas a lamentar como em todos os episódios de qualquer guerra,
se à partida mais utilidade não teria senão permitir que D João
regozijasse per opositum com a notícia do
feito dos 16 da Atalaia da Terrinha, serviu pelo menos para que o Rei mandasse
Joane Mendes de Vasconcelos como Mestre de Campo General para Estremoz, onde
segundo os documentos do Conselho chegou de facto a 14 de Novembro. As suas
atribuições já previamente definidas tiveram uma adição explícita: receber,
treinar e exercitar as levas novas de tropas e conduzi-las a Elvas em
segurança. Não se podia repetir o que, certa ou erradamente, ficou na memória
da época como um exemplo evitável e absolutamente dispensável de imprudência
suicida, explicada pelos dois cronistas por outro problema crónico a somar à
escassez de abastecimentos: a inexperiência ou falta de preparação dos
comandos.
Imagem: Infantaria do período da Guerra dos 30
Anos (1618-1648). Gravura de Jacques Callot.
Blog
de História Militar dedicado à Guerra da Restauração ou da Aclamação, 1641-166
Regresso à “Passagem de Alcaraviça”
A rematar o seu excelente artigo, o Sr. Santos Manoel interrogava-se sobre o destino do
desafortunado sargento-mor da ordenança de Évora, João da Fonseca Barreto. Este
oficial sobreviveu ao desaire, mas foi preso e julgado, tendo sido sentenciado
em perda do cargo (note-se que, na ordenança, sargento-mor era
um cargo que podia ser desempenhado por um militar com outra patente; o mesmo
não se passava, contudo, entre as tropas pagas, onde sargento-mor era um posto). João da Fonseca
Barreto foi substituído no cargo por João de Mesquita Pimentel, que era
capitão-mor de Marvão, em 18 de Abril de 1648. (ANTT, Conselho de Guerra,
Consultas, 1650, maço 10, consulta de 2 de Agosto, confirmando a situação de
João de Mesquita Pimentel.)
Imagem: Philips Wouwerman, “Ataque a
um comboio”, meados do séc. XVII, Kunsthistorische Museum, Viena. Uma situação
comum na fronteira durante a Guerra da Restauração, onde os comboios de carros
e carroças transportando víveres, munições ou até dinheiro eram um alvo
apetecido para os beligerantes de ambos os lados.
FIM
As Comendas de Monsaraz

Conforme publicação, verifica-se que, ao Termo (Concelho) de Monsaraz, foram atribuídas oito Comendas, as quais, eram um benefício e uma honra concedida a eclesiásticos e cavaleiros!
As Comendas eram atribuídas às três Ordens Militares: Ordem de Cristo, de São Bento de Avis e, de Santiago, as quais conferiam prestígio e distinção aos portadores/homenageados!
As Comendas do Termo (Concelho) de Monsaraz, pertenciam à Ordem de Cristo, que tomou o lugar da Ordem dos Templários e, eram as seguintes:
1 - Comenda de Santa Maria da Lagoa de Monsaraz;
2 - Comenda de São Marcos (Monsaraz);
3 - Comenda de Nossa Senhora da Caridade de Monsaraz;
4 - Comenda de São Pedro (Monsaraz);
5 - Comenda de São Tiago de Monsaraz;
6 - Comenda de Nossa Senhora da Orada de Monsaraz;
7 - Comenda de São Romão de Monsaraz;
8 - Comenda de Nossa Senhora das Vidigueiras de Monsaraz.
LIVRO DE REGISTO DAS DÉCIMAS DAS COMENDAS DAS TRÊS ORDENS MILITARES
📷 Unidade de instalação NÍVEL DE DESCRIÇÃO
PT/ADEVR/AC/PCEVR/B-B/006/0003 CÓDIGO DE REFERÊNCIA
Atribuído TIPO DE TÍTULO
1798 📷 a 1798 📷DATAS DE PRODUÇÃO
Papel. DIMENSÃO E SUPORTE
EXTENSÕES
10 Folhas
Contém o registo das comendas da Ordem de Cristo, os comendadores, os rendeiros das comendas, os rendimentos dos mesmos e ao valor da décima paga.
ÂMBITO E CONTEÚDO
- Comendas da Ordem de Cristo:
Comenda de Santa Maria da Lagoa de Monsaraz, Comenda de São Marcos (Monsaraz), Comenda de Nossa Senhora da Caridade de Monsaraz, Comenda de São Pedro (Monsaraz), Comenda de São Tiago de Monsaraz, Comenda de Nossa Senhora da Orada de Monsaraz, Comenda de São Romão de Monsaraz, Comenda de Nossa Senhora das Vidigueiras de Monsaraz.
Comenda de Santa Maria da Lagoa de Monsaraz, Comenda de São Marcos (Monsaraz), Comenda de Nossa Senhora da Caridade de Monsaraz, Comenda de São Pedro (Monsaraz), Comenda de São Tiago de Monsaraz, Comenda de Nossa Senhora da Orada de Monsaraz, Comenda de São Romão de Monsaraz, Comenda de Nossa Senhora das Vidigueiras de Monsaraz.
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