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terça-feira, 29 de outubro de 2024

O RAPAZ DAS CABRAS



O RAPAZ DAS CABRAS


Tinha cumprido recentemente os 10 anos, o magro salário de tratorista do Ti Cachaça na herdade do Azinhalinho e apesar de ser concertado mal dava para o sustento da família, muitos eram os miúdos que por volta dessa idade eram encaminhados para ajuda de mourais das grandes Herdades.

O parcelamento dos baldios e coutadas deu origem ao aparecimento de lavradores e ceareiros de pequena e média dimensão que complementavam a produção de cereais, com pequenos rebanhos quer fossem de ovelhas, cabras, porcos ou por vezes até mistos empregando na maioria das vezes alguns miúdos como mourais, responsabilidade redobrada, mas livre das asperezas de alguns mourais que parecendo não ter filhos se esqueciam que também eles foram miúdos.

Tivera o Serafim sorte e não foi parar a nenhuma herdade, vizinhos da mesma aldeia, foi guardar gado para o ti Manel do Gato, homem ligado ao ofício de moleiro de onde herdou o apelido do Gato (moinho do gato), mas que tinha um pequeno rebanho de quatro ou cinco cabras e alguns porcos que apascentava nos terrenos anexos ao moinho do Ramalho no Azevel.

Serafim levanta-te olha que está na hora de ires buscar as cabras e ires para o Ramalho dizia a ti Catarina. Meio estremunhado e depois de umas sopas de café engolidas à pressa, pegou na sacola do almoço e no pequeno bordão de zambujo que o seu padrinho lhe tinha oferecido e no qual a golpe de navalha tinha gravado as iniciais do seu nome, a manhã estava igual a tantas outras manhãs de inverno, chovia copiosamente felizmente não havia muito vento o que lhe permitia levar guarda-chuva.

Escassos 200 metros separavam a sua casa dos casões e cabanas do Ti Manel do Gato, bom dia Joaquim Inácio, adeus Serafim, olha podes ir andando e com o dia que está aí logo não deixes fazer muito tarde para te vires embora, se faltar entrar algum dos porcos não te rales, deixa-lhe uma porta do chiqueiro aberta que os bácoros voltam sempre a malhada, e não te esqueças que se o Vale Cebola levar muita água, não te metas à água, ali ao chaparral do Zé Grilo vais mais para cima que mesmo detrás do Outeiro está outra passagem onde a água espraia mais e o porto não é tão fundo, recomendava o Joaquim Inácio do Ti Manel do Gato, ao qual o Serafim respondia, sim senhor Joaquim Inácio.

Os quase quatro quilómetros entre o Telheiro e o moinho do Ramalho foram um pouco lentos, não só porque o piso estava lamacento, mas também porque uma das cabras estava na fase final de gestação e mal podia com a barriga. A rotina repetia-se, chegava, soltava os porcos e guardava o pequeno rebanho dentro dos limites pré-definidos, desta vez tinha o trabalho facilitado porque o Azevel fazendo jus à sua imprevisibilidade de caudal levava uma enorme cheia, impedindo assim todas as tentativas de qualquer animal passar para o lado do Roncão.

A chuva amainara um pouco, mas não o suficiente para poder desfrutar a céu aberto da bucha que a mãe lhe havia preparado, procurou mo extremo norte dos seus limites e junto ao poço dos agriões aquela lapa que tão bem conhecia e que montes de vezes tinha sido o seu porto de abrigo em dias de temporal, comeu o seu naco de pão com chouriço e toucinho, umas azeitonas pisadas e para terminar um pequenino melão carronha.

A chuva que havia amainado à hora de almoço voltava agora com mais intensidade, lembrou-se das recomendações do Joaquim Inácio se o dia continuar chuvoso não deixes fazer muito tarde porque depressa vem a noite e tens o Vale Cebola para passares, o Vale Cebola é um ribeiro por vezes caudaloso que corre junto à aldeia do Outeiro e recolhe toda a água da chuva da vertente norte da Serra da Barrada. Encerrou os porcos nas malhadas do moinho e com as quatro ou cinco cabras que o acompanhavam e que tinha que trazer de regresso ao Telheiro para pernoitarem, serem ordenhadas ou dar de mamar aos chibos quando era o caso iniciou o regresso a casa e ao Telheiro. Para azar o seu a, Catita nome pelo qual tratava a cabra prenha havia parido a campo nesse dia, o que implicava ter que levar o chibinho às costas, nada que não estivesse dentro das competências do pequeno grande pastor, mas que com as condições atmosféricas adversas que estavam e a sua tenra idade iria ser uma tarefa penosa. O caminho estava lamacento e os pequenos regatos atravessavam a estrada numa corrida desenfreada para se juntarem ao Vale Cebola, não tardou muito os últimos raios de luz engoliam a sua frente a silhueta do Outeiro, o sussurro das águas do Vale Cebola já se faziam ouvir, deixando adivinhar momentos angustiantes, lembrou-se uma vez mais das palavras do Joaquim Inácio e parou junto ao ribeiro, o instinto maternal falou mais alto e antes que pudesse fazer alguma coisa, as cabras que tinham os chibinhos no Telheiro meteram-se à agua e apesar de arrastadas pela corrente saíram uns metros mais abaixo retomando o caminho do Telheiro, apenas a Catita e o chibinho ficaram com ele.

Ó ti Catarina veja lá se me arranja alguém para ir comigo que as cabras já chegaram e da Catita e do Serafim nem rasto e isto não me está a cheirar bem, dizia o Joaquim Inácio para a mãe do Serafim — Aí filho!! Deus queria que não tenha acontecido nenhuma desgraça vou já ver se o padrinho dele pode ir contigo, respondia a Ti Catarina Palaricas. Impelidos pela força natural de quem vai em auxílio de alguém depressa galgaram a distância que separa o Telheiro do Vale Cebola, a luz do lampião para pouco mais servia que assinalar a sua presença, ainda assim era suficiente para ver que, na verdade, o Vale Cebola com toda a água que havia caído se tornava intransponível, não queriam acreditar numa desgraça e como tal lembraram-se das recomendações do Joaquim Inácio, se o ribeiro for muito cheio não, passes ali, vai mais para cima e onde as aguas espraiaram mais há um porto menos fundo.

SERAFIM!! Ó! Serafim! Gritavam (ambos) a plenos pulmões na esperança que o miúdo os ouvisse, enquanto isso do outro lado do ribeiro com o chibinho às costas lutando contra a chuva a lama e algum cansaço tentava desesperadamente o Serafim encontrar o tal porto (passagem) a escuridão era total as terras encharcadas em água atascavam-no a si até aos joelhos, várias foram as vezes que teve que voltar a traz a ajudar a cabra a sair da lama, o chibinho do branco e preto natural nada existia era todo ele cor de argila, tentava a tudo o custo sufocar o choro e o desespero enquanto o ribeiro corria tumultuoso a seu lado ocultando a tal passagem, sabia que o outeiro não estava longe, mas por mais que gritasse ninguém o ouvia, pareceu-lhe num determinado momento ter visto no outro lado do ribeiro um ponto luminoso, talvez a luz de algum monte, tentou a todo o custo fixar-se nesse ponto luminoso que lhe dava a sensação que caminhava para montante na sua direção, tinha perdido um pouco a noção do tempo, mas mesmo assim tinha esperança que fosse alguém a sua procura, ficou imóvel deixando a luz aproximar-se e começou a ter a sensação de ouvir vozes, apurou todos os sentidos e agora sim, ouvia nitidamente chamar pelo seu nome, quis responder, mas o som não saía, a voz embargada pela emoção não lhe o permitia, apenas as lágrimas calcadas até ali saíam agora livremente, porque os homens também choram, do outro lado do ribeiro continuava a vir aquele grito tranquilizador de Serafim !! Óh !!!Serafim, agora sim, já conseguia responder, estou aqui !! estou aqui !!, do outro lado do ribeiro alguém exclamou Graças a Deus o gaiato está ali, gritou-lhe o Joaquim Inácio, vai andando mais para cima que nós também vamos e já te ajudamos a passar, com a água pela cintura amparando-se mutuamente e enfrentando alguma corrente conseguiram chegar ao Serafim à cabra e ao chibinho e regressar ao Telheiro onde a notícia já se havia espalhado e havia algum alvoroço. Felizmente tudo acabou bem.

 

Que esta historia seja também uma homenagem a todos os rapazes das cabras espalhados por esse mundo fora e que se fizeram homens antes de serem crianças.

 

Texto Isidro Pinto