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segunda-feira, 17 de maio de 2021

A LENDA DO OUVIDOR DA VILA DE MONSARAZ


A lenda do Ouvidor da Vila de Monsaraz 

No ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quinhentos e trinta, a Vila de Monsaraz estava no auge em termos sociais e económicos, sendo considerada a jóia da Sereníssima Casa de Bragança, repleta de gente influente, fidalgos, escudeiros e lacaios, alguns frequentavam a Corte do Rei D. João III, o Piedoso, mas devido à sua fama, também atraía muitos indesejados, maltezes, vadios e malfeitores que vagueavam em grupos pelo reino, em busca do que podiam apanhar sem trabalhar!

A Villa de Monsaraz, nessa época, estava a tornar-se uma terra sem lei e chegavam muitas queixas à Corte a pedir que fosse feita justiça, porque a Ouvidoria não tinha Ouvidor, facilitando a criminalidade, com a agravante da proximidade da fronteira com Castela, por onde entravam e saiam muitos criminosos! 

Depois de confirmar o fundamento das queixas, o Rei D. João III, nomeou João de Sousa que, tinha fama de ter mão pesada contra o crime, ganhando com isso, o apelido de "sem coração" por ser impiedoso, para Ouvidor da Ouvidoria da Vila de Monsaraz! 

Um Ouvidor era a designação dos magistrados ou juízes que superintendiam na justiça das terras senhoriais! As suas funções eram semelhantes às dos corregedores nas terras diretamente dependentes da Coroa! As terras sujeitas a corregedores eram chamadas comarcas ou correições e as sujeitas a ouvidores eram chamadas ouvidorias, como era o caso da Vila de Monsaraz, visto ser uma Vila senhorial, da dita Sereníssima Casa de Bragança!

Quando o Ouvidor, ou juíz João de Sousa chegou à Vila de Monsaraz, nos finais do segundo decénio de 1500, confirmou que, a justiça estava um caos, a cadeia era assaltada e, os presos libertados por grupos de malfeitores, portugueses e castelhanos, sendo necessário começar, imediatamente a repor a ordem e começou a fazer julgamentos apressados, bastava um homem bom, apresentar uma queixa, fundamentada e com as devidas testemunhas,  se fosse caso de sangue, ou tentativa de homicidio, a sentença era a condenação à Forca, sem fazer mais averiguações, como era obrigação do Ouvidor! 

A justiça do Ouvidor João de Sousa, o "sem coração", começou por ter bons resultados, porque obrigou muitos vadios e malfeitores a afastarem-se da Vila de Monsaraz e, aliviou a criminalidade, mas isso não alterou o seu método de fazer justiça, era Ouvidor, mas não estava para perder tempo a ouvir o que devia ouvir, dizia que, havendo testemunhas dos crimes, embora em muitos casos compradas, não era necessário ouvir ou investigar mais nada, condenando eventuais inocentes à Forca e, não aceitava os pedidos dos suplicantes, mesmo dos padres que, muitas vezes tinham provas que, os condenados estavam inocentes! 

A justiça do Ouvidor, depressa caiu na  injustiça, porque, aumentavam os que eram enforcados estando inocentes e nesses casos, havia pais que deixavam as casas cheias de filhos desamparados, com fome, revoltando qualquer homem justo, mas em nenhum caso o "sem coração" aceitava pedidos de clemência, mesmo que fossem de fidalgos ou dos padres de Monsaraz! 

Enquanto os erros da justiça do Ouvidor foram sobre os mais pobres que, por medo, as famílias pouco se queixavam, não chegavam à Corte,  mas quando bateu à porta dos mais influentes e o Ouvidor não atendeu aos pedidos de clemência, nem de mais investigação, começaram a chegar queixas ao Rei D. João III que, não dava resposta, porque achava que o Ouvidor estava fazendo um bom trabalho na Vila de Monsaraz e, os queixosos que, eram cada vez mais, secretamente, organizaram um grupo de apoio e planearam o afastamento do Ouvidor da Vila de Monsaraz!

O grupo dos queixosos tinha aliados do clero, vários padres, amigos e familiares na Corte que, começaram a investigar o passado do Ouvidor, ou seja, a procurar a existência de atos que o comprometessem e, não foi difícil descobrir que, tinha processos judiciais arquivados, por adulterar com mulheres casadas que, era crime, embora não lhe tivesse acontecido nada por falta de provas, mas ficaram a saber que, muito fácilmente perdia a cabeça por mulheres bonitas, logo, seria este o caminho que tinham de seguir para o apanhar em falso!

Nessa época, entre outros, residia e trabalhava na Vila de Monsaraz um tabelião, casado com uma mulher muito mais nova, era alta, esbelta, muito linda e vaidosa, com porte duvidoso que, não se poupava a expôr-se nos seus passeios pelas principais ruas da Vila, virando do avesso, a cabeça de muitos homens!

Não foi necessário muito tempo para o Ouvidor perder a cabeça pela mulher do tabelião, a tal ponto que, não se importava de dar nas vistas, talvez por se achar muito poderoso, uma situação que dava jeito ao grupo dos queixosos, os quais, com muito cuidado, começaram a registar, com testemunhas influentes, os encontros do Ouvidor com a mulher do tabelião, a data, horas e lugares onde se encontravam, reforçado com a acusação de desleixo pelo seu dever de Ouvidor que, depois era mal desempenhado, com erros e condenações de inocentes à Forca! 

As provas foram reunidas durante meses e bem organizadas, com testemunhas muito conceituadas, homens bons, padres, lacaios, lavradores e outros, sendo o processo enviado ao rei D. João III debaixo de grande segredo, na acusação escreviam que, o Ouvidor andava a adulterar com a mulher de um tabelião de Monsaraz e devido a isso, não cumpria a sua missão, condenando inocentes à Forca, devido a não ouvir ou investigar o que tinha de ouvir, pelo que,  pediam o seu afastamento da Ouvidoria da Vila de Monsaraz! 

O processo chegou às mãos do Rei D. João III, com o parecer de altos magistrados da Coroa, com indicação que o Ouvidor era recorrente e com a proposta de ser afastado da Ouvidoria da Vila de Monsaraz, mas o rei, não só o mandou afastar do cargo, como também, emitiu uma ordem de prisão, com indicação de ser julgado pelos crimes de que era acusado, sendo o Ouvidor João de Sousa encarcerado na cadeia do Castelo de Monsaraz! 

A prisão do Ouvidor chegou, imediatamente aos ouvidos das gentes da Vila de Monsaraz, ficando a maioria muito contentes, porque, não sabiam quando podiam ir parar à Forca, por qualquer acusação falsa, como tinha acontecido a alguns montesarenses, mas começaram a dizer que, era uma prisão de fachada, para acalmar a população, porque, sabiam que na cadeia não lhe faltava nada, tinha tudo do melhor e, vários guardas, noite e dia a guardar a cadeia para o proteger contra inimigos que lhe juravam pela pele, por ter condenado à forca, filhos, familiares ou amigos que, estavam inocentes, ou tinham cometido pequenos crimes que, não podiam ser puníveis com a forca e ouvia-se que, lhe rezavam muitas pragas e as feiticeiras faziam mezinhas para tirar o coração ao sem coração! 

O seu bem estar na cadeia, era comentado pela Vila de Monsaraz e, as ameaças contra ele, aumentavam dia a dia, ficando a sua segurança em causa, pelo que, após ser dado conhecimento ao Corregedor da Corte, foi decidido que seria transferido para a prisão da Corte em Évora! 

A saída do Ouvidor da Vila de Monsaraz para Évora foi marcada, secretamente para uma noite pelas duas horas da manhã, quando a Vila estivesse a dormir e, não dessem por nada, mas nessa noite, quando o capitão da guarda o foi acordar para se preparar e partir, o Ouvidor estava morto sobre a cama! 

O capitão da guarda que fazia parte da escolta, foi a correr chamar o alcaide e o físico (médico) do castelo, este para verificar se ainda havia sinais vitais, uma vez que, achava que o corpo do Ouvidor ainda estava quente e, quando o físico e o ajudante, enfermeiro, o viraram e a luz dos archotes o iluminaram, os presentes, ficaram paralisados a olhar uns para os outros, sem dizerem uma palavra, por fim, o físico exclamou: - Sem coração! Tinham arrancado o coração do Ouvidor! 

Quando foi comunicado ao alcaide que, estava do lado de fora da cadeia, este não queria acreditar, depois de se inteirar da situação, começou a interrogar os guardas que estavam de serviço, separados, um a um, e contaram todos a mesma versão, a porta da cadeia estava fechada até o capitão ali chegar e, antes nunca se abriu, por isso, ninguém lá podia entrar e, acabavam exclamando que, decerto, se tinha suicidado, não havia outra explicação, mas ainda não sabiam da ausência do seu coração!

No interrogatório, o alcaide perguntou aos guardas o que tinham visto e ouvido antes da triste descoberta e todos responderam que tinham visto o Ouvidor a deitar-se na sua cama depois da ceia, mas nenhum tinha ouvido nem gritos nem gemidos, nem ai, nem ui, mas todos diziam que, tinham visto um grande gato preto com uns olhos que iluminavam a noite, nunca visto no castelo, a sair por entre as grades do portão da cadeia e que se tinha sumido na última torre do castelo a da esquerda, alguns guardas, diziam que tinham visto mais do que um gato, fazendo o mesmo percurso! 

Depois das respostas dos guardas, o alcaide fez um relatório do sucedido e escreveu uma carta a pedir instruções e ajuda muito urgente, por estar perante um caso insólito, um grande mistério e, mandou dois mensageiros a Évora, onde chegaram cedo e entregaram os documentos ao Corregedor da Corte! 

Tratando-se da morte de um magistrado e do tipo de crime, ainda nesse dia, à tardinha, chegou uma equipa com os melhores investigadores e físicos da Corte, ao castelo de Monsaraz, os quais, quando se inteiraram sobre o que tinha acontecido, ficaram incrédulos e quiseram começar logo a trabalhar, isolaram a área da cadeia, para não ser devassada e passaram o resto da tarde e a noite a interrogar os guardas e toda a gente com acesso ao castelo, e de manhã, começaram a analisar ao milímetro o espaço da cadeia e do castelo e, no dia seguinte, alguns passaram para o exterior a interrogar os montesarenses residentes nas imediações, sobre o que tinham ouvido ou visto de estranho, relacionado com o caso, nos dias anteriores, mas passadas quase duas semanas a investigar, estavam muito dececionados no ponto de partida, sem descobrir nada de novo, ninguém tinha visto nem ouvido nada, restava-lhe a confirmação que, quem tinha assassinado o Ouvidor tinha passado pela torre que os guardas referiam, onde estavam alguns vestígios de sangue, mas não havia sinais do coração do infeliz! 

Os investigadores e os físicos escreveram nos relatórios que, a morte do Ouvidor devia ter sido concertada entre os guardas de serviço, muito bem concertada, mas não conseguiam provar, porque, tinham sido interrogados até à exaustão e todas as respostas batiam certas, o coração e o sangue tinham desaparecido e, depois de virar a Vila de Monsaraz do avesso não tinham encontrado nada, a não ser na dita torre, mas não escreveram uma palavra sobre os gatos pretos e finalizaram escrevendo que, o processo ficava em aberto, esperando desenvolvimento sobre o misterioso crime!

 Quando a notícia da morte cruel do Ouvidor alastrou pela Vila de Monsaraz, toda a gente ficou chocada, não era aquele o castigo que desejavam, embora, ele tivesse condenado muitos inocentes à forca, mas o crime era muito hediondo e assustava muita gente! 

Quando começaram a ouvir dizer que, os guardas do castelo tinham visto os grandes gatos pretos a sair da cadeia e que se tinham sumido na torre da esquerda, na qual tinham encontrado sangue do Ouvidor, não tiveram dúvidas que os criminosos estavam descobertos, tinha sido obra das feiticeiras, decerto, o Ouvidor tinha condenado à forca, algum filho ou outro familiar inocente e fizeram justiça pelas suas mãos, por isso, a torre do castelo de Monsaraz onde os gatos pretos se sumiram naquela noite do crime, ficou a ser conhecida pela torre das feiticeiras! 

O Ouvidor foi sepultado sem coração, o qual, nunca mais foi encontrado e, ainda se encontra perdido, dentro, ou nas imediações do castelo de Monsaraz.

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Fotografia: Isidro Pinto 


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