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segunda-feira, 3 de agosto de 2020

MEMORIAS DO GUADIANA I

MEMORIAS DO GUADIANA

Aventuras no Guadiana



Não consigo precisar o ano mas talvez princípios dos anos 70, apenas sei que ainda não era caçador e foi nessa condição de ajudante ou mochileiro que fui para a Mal Cega com o Joaquim Cardoso e o Manuel Rela seu irmão, combinado é combinado e às 5 da manhã lá estava eu e o Manuel, dispostos a servir de barqueiros e ajudantes do Joaquim Cardoso, este sim já feito caçador. A viagem foi feita de motorizada ainda noite completamente cerrada, já que caçar aos patos implicava estar por ali antes do nascer do dia, chegados ao Calvinos deixámos as motorizadas no cabanão anexo ao monte e com a ajuda de lanternas descemos até ao rio, onde previamente havia-mos deixado o barco do Relâmpago, (Montesarense amigo nosso, cuja alcunha vêm do facto de andar sempre muito rápido de motorizada) feito o embarque iniciámos a subida do rio, o destino seria a Foz da Areosa ou a Mal Cega, sítios de eleição para a caça aos patos. Estava uma típica noite de verão, o calor e a ausência total de vento faziam com que a única brisa fosse a resultante do movimento dos remos, o silencio era total, apenas quebrado por algum pato mais assustadiço ou pelo saltar de algum peixe de maiores dimensões, o brilho intenso das estrelas desaparecia e o dia começava a clarear, navegávamos agora sem a ajuda de lanternas e á nossa volta era um despertar de vida, os peixes saltavam agora incessantemente, ouvia-se de vez enquanto o chapinhar na água de um ou outro pato que ia levantando, do lado de Espanha na barreira sobranceira ao rio os coelhos apressavam-se a entrar para os covais, por cima de nós passavam enormes bandos de carraceiras que levantados de algum silvado junto ao rio dirigiam-se agora para sul, e ali estávamos nós insignificantes mortais metidos dentro de um pequeno barco no meio de todo este brotar de vida, era o Guadiana no seu esplendor ou o grande rio do sul como alguém um dia lhe chamou, é já ali a seguir àquelas rochas altas dizia o Joaquim Cardoso, remámos na direção da margem e procurámos uma pequena enseada onde fosse possível desembarcar com segurança, encontrámos entre as rochas uma pequena língua de areia com as condições ideais, foi aí que desembarcamos e posteriormente deixámos o barco preso. O Joaquim Cardoso apressou-se a escolher o que para si seria o sítio ideal para esperar os patos, e rapidamente improvisou um esconderijo, eu e o Manuel fomos procurar uma boa sombra que ali não era tarefa fácil, era uma zona demasiado rochosa e a única disponível era a de um raquítico freixeiro cujo solo á sua volta também era demasiado pedregoso, ficámos ambos expectantes talvez pensando como é que era possível o Freixeiro ter nascido no meio das rochas, o cansaço começava a tomar conta de nós, a noite passada em claro nas festas da Amareleja de onde tinha-mos vindo diretamente para a caça começava a cobrar o seu preço, meio sentados meio deitados tentámos acomodar-nos, enquanto tudo isto se desenrolava o Joaquim continuava impávido e sereno no seu posto esperando melhor sorte, já que até ali nada, nem um tiro, o sol não sendo ainda insuportável começava já a aquecer o dia, afinal estávamos em Agosto, á mesma velocidade do sol também nós íamos rodando na sombra do freixeiro, o dia aquecia cada vez mais as moscas e carraços também queriam cobrar a sua parte e não nos davam um minuto de descanso, como os resultados da caçada eram nulos começamos a pressionar o Joaquim Cardoso para ir embora, mas ele com a persistência própria dos caçadores novatos não arredava pé, cansados de tanto pressionar e já no limite da nossa paciência engendrámos um plano e escapámo-nos sorrateiramente até ao barco, se bem o pensámos melhor o executámos e passados poucos minutos remávamos já na direção do moinho de Calvinos deixando para trás o Joaquim Cardoso, de referir que toda esta zona é extremamente rochosa e de difícil acesso, chegados ao sitio de onde havia-mos partido de madrugada, prendemos o barco, escondemos os remos, e subimos os cento e cinquenta ou duzentos metros que nos separavam do monte e do cabanão, a dificuldade da subida e o calor que aquela hora se fazia sentir dificultava-nos a respiração, paramos para descansar, olhamos na direção do rio, e da Mal Cega e muito ao longe já se via o Joaquim Cardoso de pedra em pedra iniciando o caminho de regresso, nessa altura já as carnes lhe pesavam um pouco, imaginámo-lo completamente empapado em suor e quase a ser comido pelos carraços, não quisemos correr o risco de esperar por ele porque seguramente viria capaz de nos engolir. Espero que Deus tenha a sua alma em descanso e que ao fim de todos estes anos já nos tenha perdoado. 

"Texto e foto: Isidro Pinto"


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