Pesquisar neste blogue

sábado, 12 de outubro de 2019

A LENDA DA PRINCESA FILITA


A lenda da escrava Filita, que em Monsaraz foi princesa


Manoel Jorge, era filho de um lavrador das terras de Capelins, veio ao mundo no Domingo dia 17 de Fevereiro de 1732, sendo batizado na Igreja de Santo António de Capelins pelo Pároco Manoel Gonçalves Gallego! Foi educado na herdade de seu pai e, desde muito cedo demonstrou entender-se bem com os cavalos, aos quatro, ou cinco anos de idade já montava com o apoio de seu pai!
Fez os estudos primários e, depois estudou latim, francês e filosofia, ministradas por uma mestra que, andava pelos Montes dos lavradores a dar aulas aos seus filhos, assim, quando fez vinte anos de idade, alistou-se no exército do reino, ingressando na companhia de cavalos aquartelada na, então Vila de Estremoz!
Manoel Jorge, tinha uma inteligência e talento invulgares, destacou-se de todos os outros companheiros na formação militar, sempre que tinha oportunidade, apresentava estratégias de combate e defesa que, impressionavam os seus superiores! A sua destreza de montar e dedicação à vida militar, rapidamente lhe permitiram alcançar o posto de alferes de cavalos!
A sua praça militar era Estremoz, mas esteve por várias vezes destacado nas praças de Elvas, Juromenha, Vila Viçosa e Olivença, intervindo nas incursões castelhanas no território português!
Com cerca de vinte e cinco anos, perdeu-se de amores pela Maria do Rosário, filha de um sargento mor de cavalos que, ombreava com ele, em todas as campanhas, era o seu anjo da guarda, dava a vida pela dele, um bom sogro, então, após um ano de namoro, no dia 24 de Setembro de 1758, foi realizado o seu matrimónio na Igreja Matriz de Santa Maria em Estremoz!
Manoel Jorge e Maria do Rosário, ficaram a residir em Estremoz, onde levavam uma vida sem sobressaltos, porque existia paz entre os dois reinos vizinhos, uma situação que prejudicava a subida de patentes militares, mas poupava vidas, porém, Manoel Jorge, em 1765, já era tenente, aumentando cada vez mais a responsabilidade na companhia de cavalos!
No dia 15 de Maio de 1770, já com 38 anos, foi chamado ao capitão mor, comandante da companhia de cavalos, que lhe comunicou a sua transferência para tomar posse como capitão de cavalos na praça de Montemor-o-Novo!
A subida de patente era desejada, já o mesmo não acontecia quanto à saída de Estremoz, onde já tinha raízes, ali tinham nascido três filhas e era nesta Vila que residiam os pais de Maria do Rosário, não era agradável, mas não havia nada a fazer!
O tenente de cavalos, Manoel Jorge, partiu com a família para a Vila de Montemor-o-Novo, não era longe de Estremoz, mas a adaptação da família a este novo meio social, não foi fácil, no entanto, com o passar do tempo, as crianças começaram a fazer amizades, tal como os pais e, passados alguns meses já estavam integrados na sociedade montemorense!
A sua vida militar, social e familiar era estável e, nasceram mais duas filhas, acabando por atenuar a nostalgia sentida pela Vila de Estremoz!
Na segunda-feira, dia 30 de Abril de 1776, quando o capitão Manoel Jorge, se dirigia para sua casa, no largo em frente ao castelo de Montemor-o-Novo, estava um ajuntamento de montemorenses, fazendo grande alarido que, parecia ser uma briga! Para confirmar o que ali se passava, aproximou-se e viu que era um mercador com uma carroça gaiola a leiloar escravos e naquele momento, tinha entre mãos um farrapo com um esqueleto dentro, depois, reparou que era uma rapariga que soluçava com vómitos constantes, estando o leilão num impasse, porque, ninguém a queria comprar! O preço descia e, todos comentavam: - Mesmo barata, para que a quero? Só se for para a ir sepultar!
O capitão ficou chocado com aquele espetáculo, aproximou-se mais e naquele momento a menina levantou os olhos e fixou-os nos dele a pedir-lhe ajuda, ele nem se apercebeu do que estava a fazer, arrematou o leilão e ficou com a escravinha! Enquanto pagava e guardava a escritura de propriedade, ouviu toda espécie de comentários de chacota!
Como era impensável voltar atrás, ajudou a escravinha a manter-se em pé e levou-a até ao quintal de sua casa que, ficava perto! Quando chegou, um pouco contrariado e irritado por ter sido alvo de chacota, por aquela gente que assistia ao leilão, chamou a esposa e a sua escrava Catarina!
A Maria do Rosário quando viu aquela triste figura, ficou a olhar sem uma palavra, parecia-lhe um bicho, ainda pensou que seria uma macaca, ou uma cadela galga, mas antes de abrir a boca, o marido contou-lhe o que se tinha passado e ia fazer tudo para lhe salvar a vida! A esposa disse-lhe que tinha praticado uma boa ação e também ela faria tudo para não a deixar morrer!
O capitão depois de a deitar numa tarimba na cabana, foi a correr chamar o físico (médico) militar e seu amigo, este depois de a observar disse-lhe que não era fácil salvá-la, ia tratar dela o melhor que sabia, mas não dava nenhuma garantia em a salvar!
A Maria do Rosário disse à escrava Catarina para tratar bem da escravinha, não podia morrer e para seguir à risca o tratamento que o físico lhe receitou!
A escrava Catarina dedicou-se tanto à escravinha que, a primeira semana pouco dormiu, mas graças a ela e aos tratamentos do físico, a escravinha começou a segurar os alimentos no estômago, um bom sinal para a sua salvação!
O capitão e a família, habituaram-se a tratá-la por escravinha, nem se lembravam que na escritura de propriedade, estava o seu nome! As filhas insistiam em ver a escravinha e queriam saber o seu nome, um dia a Maria do Rosário, depois de dizer à escrava Catarina para a preparar, lavar e vestir com roupas do refugo das filhas, levou-as à cabana no quintal!
As meninas ficaram muito surpreendidas por a escravinha ser quase branca, embora houvesse muitas escravas brancas, os seus cabelos eram lisos, com poucos sinais de africana! Depois de passar a parte da observação, começaram a fazer-lhe perguntas, mas ela estava envergonhada e pouco respondia, mas quando lhe perguntaram como se chamava, respondeu que era Filita! As meninas repetiram em coro: - Filita? A escravinha Filita confirmou abanando a cabeça afirmativamente e disse: - É também esse o nome da minha mãe!
A Maria do Rosário disse às filhas que, já chegavam as perguntas e a visita à escravinha, ficou por ali!
Quando o capitão chegou a casa, as meninas correram a recebê-lo e contaram-lhe que já tinham visto a escravinha e sabiam o seu nome, dizendo em coro: - Filita!
O capitão lembrou-se da escritura e foi à arca de madeira onde estava guardada, desdobrou a folha de papel, percorreu-a com o olhar e leu alto: Filita! É verdade, ela é Filita!
A Filita foi melhorando, muito devagarinho e, quando já estava bem, começou a trabalhar em casa dos seus donos, fazendo limpeza na casa, lavando roupa das meninas e, outras tarefas!
Os anos passavam e a escravinha Filita estava cada vez mais bonita, dona de umas formas e fisionomia exótica únicas em Montemor-o-Novo, deixando os homens que tinham troçado dela e muitos outros boquiabertos, os quais, tentavam pilhá-la, porque sendo escrava, embora com dono, não era respeitada, por isso, o capitão deu ordens rigorosas para nunca se afastar de casa sozinha, somente podia sair na companhia das suas donas, porque, aos olhos desses homens, uma escrava não passava de um animal indefeso!
O capitão e a sua família viviam muito felizes em Montemor-o-Novo, mas no início do mês de Setembro de 1782, o capitão recebeu a notícia que seria transferido para a praça da Vila de Monsaraz, com a patente de capitão mor! Manuel Jorge, ficou preocupado porque embora voltasse à sua região, muito perto das terras de Capelins, tinha de pensar nas suas cinco filhas, algumas quase em idade casadoira, tinham amizades em Montemor-o-Novo, não seria fácil terem um bom casamento em Monsaraz, mas quando pensou que, o futuro só a Deus pertence ficou aliviado!
A família pouco satisfeita, partiram de Montemor-o-Novo, na madrugada do dia 6 de Outubro de 1782, em duas carroças e, o capitão no seu cavalo, por Alcáçovas, Viana do Alentejo até Portel, onde pernoitaram! Depois, na madrugada do dia seguinte, continuaram para a Vila de Monsaraz, onde chegaram à tardinha e instalaram-se, imediatamente na casa já preparada para os receber!
Na Vila de Monsaraz, enfrentavam mais uma adaptação ao meio social, aqui a elite era mais fechada, mas a família de um capitão mor tinha o seu lugar garantido na alta sociedade, por isso, todos se apressaram a abrir-lhe as portas de suas casas e, os convites para festas, chegavam a todo o momento!
A esposa e as filhas do capitão mor, tentavam fazer boa figura e, compravam vestidos caros de seda e outros adornos, vivendo acima das suas posses e, se já vinham endividados, a situação em Monsaraz estava a piorar! O capitão mor não se podia valer da sua família de Capelins, porque, devido aos maus anos agrícolas, também estavam crivados de dívidas, mas a família não podiam cair na chacota da alta sociedade montesarense, por isso, ainda era melhor ter dívidas do que passar por essa vergonha!
As Famílias da elite montesarense que tinham filhos e filhas em idade casadoira, organizavam festas em suas casas para convívio, de onde podiam sair namoricos e, eventuais casamentos! As filhas mais velhas do capitão mor, estavam nessa situação, como ainda eram pouco conhecidas em Monsaraz, decidiram fazer uma festa, para a qual foram convidadas todas as famílias ilustres de Monsaraz, incluindo um rapaz muito estimado na Vila, ao qual, chamavam o "quase fidalgo", tinha vinte e quatro anos e residia numa grande casa senhorial no centro da Vila!
Este rapaz, era filho de um sobrinho do Duque de Bragança e da filha do mestre sapateiro João Diogo! O fidalgo da Casa de Bragança foi incumbido de investigar o valor das Sisas e, envolveu-se com uma rapariga de olhos lindos, de longos cabelos negros que, se deixou enfeitiçar pelo fidalgo, caindo-lhe nos braços! Quando ele voltou para Évora, deixou-a embaraçada, esperando uma criança, ao qual, quando nasceu foi dado o nome de João Diogo, como o do avô, sendo batizado pelo Cura Manoel Dias Parra, ficando assente que era filho de pai incógnito!
Esta situação, deu muito falatório na Vila de Monsaraz, muita gente fazia pouco do sapateiro e da sua filha, até que, o pobre homem, decidiu escrever ao Duque de Bragança contando-lhe o martírio que estavam passando e pedia alguma ajuda, porque, para governar a filha e o neto "quase fidalgo da Casa de Bragança", batia sola de dia e noite, mas viviam debaixo de grande pobreza e da chacota do povo!
O Duque de Bragança recebeu a carta em Évora, uma carta com palavras muito simples, mas que deitavam lágrimas, fazendo com que ele se interessasse pelo caso e, como a seu mando, estava de saída para Monsaraz um Ouvidor para fazer uma investigação, o Duque entregou-lhe a carta do sapateiro e disse-lhe para confirmar aquela situação!
O Ouvidor andou por Monsaraz procurando saber toda a verdade e quando voltou a Évora, confirmou sem reservas o que constava na carta do sapateiro e disse ao Duque de Bragança que a cara do João Diogo era, exatamente a do fidalgo seu sobrinho. não havia nenhuma dúvida que era seu filho!
O Duque de Bragança tomou nota do que o Ouvidor lhe contou e ficou a pensar no que devia fazer, passados uns dias, chamou um tabelião de sua Casa, entregou-lhe uma procuração e, transmitiu-lhe o que queria que ele fizesse! O tabelião devia ir à Villa de Monsaraz disfarçado de negociante de propriedades, para saber qual a melhor herdade e casa senhorial propriedades da Casa de Bragança, depois de estar seguro, dar ordem de despejo a quem lá morasse e registar no Cartório da Vila a herdade e a casa em nome do João Diogo, com usufruto da mãe, depois entregar-lhe as respetivas escrituras e as chaves da casa para ela lá morar com o filho!
O tabelião, cumpriu a rigor a vontade do Duque de Bragança, passando a família do pobre sapateiro quase, instantaneamente da pobreza para a riqueza, mas o João Diogo não foi reconhecido como fidalgo da Casa de Bragança, sendo, por isso, conhecido como o "quase fidalgo", recebendo uma boa educação em Évora, mas após o falecimento de sua mãe, ainda muito nova, voltou a Monsaraz, dedicando-se à sua herdade!
O João Diogo, era tão amado pelo povo, como pela elite, era muito popular, mas a alta sociedade considerava-o um Bragança e, sabiam que, embora bastardo, estava debaixo de olho da Casa de Bragança! Também por isso, era dos rapazes mais cobiçados por todas as raparigas de Monsaraz, sendo convidado para todas as festas!
A festa na casa do capitão mor realizou-se num Domingo, não faltou nenhum convidado, entre eles, estava o "quase fidalgo" João Diogo, o qual, quando falava com um grupo de amigos, reparou na escravinha Filita que ajudava a trazer comida para as mesas! A escravinha destacava-se das outras mulheres, era fora do comum, as suas formas e feições, os seus olhos verdes, a sua tez morena, era uma beleza exótica, vestia um vestido do refugo das filhas do capitão mor que, parecia ter sido feito para ela, embora mulata, quase branca, tinha os cabelos lisos e bem penteados! Esta figura arrebatou o coração de João Diogo que, nunca tinha visto uma mulher semelhante, pelo que, começou logo a fazer perguntas sobre ela, sendo aconselhado a afastar-se, não só por ser uma escrava, mas porque, decerto, não a pilhava, porque estava sempre muito bem guardada pela família do capitão mor que a considerava sua filha!
Este conselho ainda deu mais força ao João Diogo para seguir em frente com o seu propósito, começando a magicar a maneira de a comprar ao capitão mor! Andou investigando e, foi informado por um amigo comum que o capitão mor não a vendia por dinheiro nenhum, mas ao mesmo tempo soube que o capitão mor estava cheio de dívidas e, de sua propriedade só lhe restavam as escravas, assim, imaginou que mais dia, menos dia, a escravinha saltava lá de casa!
Como era muito amigo do tabelião de Monsaraz, foi ter com ele e disse-lhe que, o capitão mor não demorava em o contactar para ele lhe tratar de um empréstimo de juro, por isso, ele estava disponível para ser o emprestador ao juro sempre mais baixo do que qualquer outro, mas como era normal, tinha de haver uma garantia que, não podia ser outra propriedade, senão a escravinha Filita!
Como o João Diogo previa, não demorou em se concretizar o contacto do capitão mor com o tabelião, a escritura de juro foi realizada e, como garantia ficou a escritura da escravinha Filita, se o capitão mor não fizesse o pagamento dos juros na data limite, a mesma, tinha de se mudar para a casa do "quase fidalgo"!
As filhas e a esposa do capitão mor, à medida que se integravam na alta sociedade montesarense, compravam mais vestidos de seda e adornos caros, estando a família, cada vez mais crivada de dívidas!
As festas continuavam, não tinham muito mais que fazer, talvez por isso, o dia limite para pagamento dos juros do empréstimo ao João Diogo, passou sem o capitão mor se aperceber!
O tabelião mandou chamar o João Diogo e participou-lhe que, legalmente, a escravinha Filita era sua e perguntou-lhe se queria dar já andamento ao processo, ou esperar mais uns dias, porque sendo o capitão mor, tinham de ter bom senso!
A vontade do João Diogo era mandar buscar a escravinha, mas pensou que seria uma afronta e, disse ao tabelião para esperar mais uns dias para ver qual seria a justificação do capitão mor! Esperaram quase um mês e nada, então o tabelião fez por encontrar o capitão mor e pediu-lhe para passar pelo Cartório, porque tinha urgência em falar com ele! Foi nesse momento que o capitão mor se lembrou da dívida que tinha contraído e devia andar por aqueles dias o vencimento dos juros, por isso, prontificou-se a acompanhar o tabelião ao Cartório!
Quando chegaram, o tabelião entregou-lhe a escritura de juro para ele ler e, quando se apercebeu que o prazo tinha terminado havia mais de um mês, pensou na escravinha, vieram-lhe as lágrimas aos olhos e apenas disse:
Capitão mor: Não posso fazer nada! Sou um homem honrado, por isso, a Filita é do emprestador, não pode ser de outra maneira!
Tabelião: O senhor capitão mor sabe que, também não posso fazer nada, a não ser, se o desejar, mandar chamar o emprestador e podem falar!
Capitão mor: Sim, gostava de falar com esse bom homem, para lhe pedir desculpa pelo meu incumprimento e para saber a quem tenho de entregar a escrava Filita que, como sabe, nunca a tratei como escrava! Vai ser um grande choque para ela e para a minha família! Mas, na verdade, não podemos fazer nada!
Tabelião: Não fique assim senhor capitão mor, conheço muito bem o emprestador e garanto-lhe que, a escrava não vai ter tratamento diferente do que tem em sua casa e fica tão perto que se podem ver todos os dias!
Capitão mor: Sendo assim, não imagina como fico aliviado, mas vai ser muito difícil explicar-lhe isto, no fundo, não deixa de ser uma traição, depois do que fizemos por ela!
O tabelião já tinha mandado chamar o "quase fidalgo" o João Diogo, que morava mesmo ao lado do Cartório!
O João Diogo chegou, cumprimentou o capitão mor e o tabelião, depois, este apresentou-o como sendo o emprestador e, consequentemente o dono da escrava Filita! O capitão mor, ficou surpreendido, depois tiveram uma conversa em privado e a seguir o João Diogo pediu ao tabelião para entregar a escritura de juro ao capitão mor, porque a dívida estava paga, não só lhe perdoava os juros, como também, o valor do empréstimo, em troca da escravinha Filita que, oficialmente já era dele!
O João Diogo, concedeu alguns dias para a família e a escravinha se despedirem, embora a mudança fosse para uma curta distância! O capitão mor foi dali, reuniu a família e a Filita, e transmitiu-lhe o que se tinha passado no Cartório! Como ele esperava, foi um grande choque e houve uma explosão de choro, que aliviou quando souberam as condições e quem era o novo dono da Filita!
Na madrugada do dia marcado para a mudança, o João Diogo mandou algumas criadas a casa do capitão mor ajudar a escravinha a carregar, alguma coisa de sua, deu ordem para ela ficar instalada num quarto dentro de sua casa e, ordenou que o seu trabalho seria ajudar na cozinha!
As criadas ficaram escandalizadas, por uma escrava ficar a morar dentro da casa do dono, mas não se atreviam a falar alto!
A Filita, passou alguns dias amargurada, devido aquela mudança, estava sempre com as filhas do capitão mor e era onde se sentia-se muito feliz! Agora, mesmo sendo muito bem tratada, sentia a sua falta! O "quase fidalgo" que andava sempre com o olho nela e, ela reparava nisso, apercebeu-se da sua infelicidade, um dia chamou-a ao escritório, ela pensou que tinha chegado a hora de conhecer um homem, já sabia que ele a desejava, por isso, não podia ser outra coisa, se ele era o seu dono, tinha todo o direito de fazer o que quisesse com ela! O João Diogo mandou-a sentar e tiveram uma longa conversa, de horas, sentiam-se muito bem junto um do outro, ele acabou por lhe dizer que gostava muito dela e estava a pensar em dar-lhe a carta de alforria, ficando uma mulher livre! A Filita estava muito contente, com dificuldade em acreditar nisso e sem saber o que dizer, até que, ele reparou que ela estava atrapalhada, levantou-se, deu-lhe um beijo na testa, ela estremeceu, e disse-lhe que podia ir embora!
Ainda nesse dia, o João Diogo, pegou na escritura de propriedade da Filita e dirigiu-se ao tabelião, disse-lhe que rescindia dos direitos de propriedade da escravinha, por isso, queria que ele emitisse a sua carta de alforria! O tabelião que o conhecia muito bem, nem se atreveu a pedir a confirmação do seu desejo! Deu, imediatamente instruções ao seu ajudante para tratar do assunto e disse a João Diogo que, em duas horas estava pronta para ele assinar e levá-la!
No dia seguinte, o João Diogo chamou novamente a Filita ao escritório, falaram a tarde toda e, ele disse-lhe que a amava, sem dúvida, desde o primeiro momento que a tinha visto na casa do capitão mor e, se ela estivesse de acordo, queria casar com ela!
A Filita sorriu, ficando ainda mais linda, e disse-lhe que também o amava, mas nunca lhe tinha passado pela cabeça alguma vez casar com ele, não percebia porque motivo ele queria casar com ela, porque se era seu dono e se a desejava podia usá-la sempre que quisesse e continuou:
Filita: A minha obrigação como sua escrava, é fazer tudo o que mandar fazer, pensava que uma escrava não podia casar com o seu dono, enquanto escrava!
João Diogo: Talvez não possa, ou não seja aceite aos olhos da sociedade, mas tu já não és escrava, és uma mulher livre, como outra qualquer, está aqui a tua carta de alforria, por isso, a escolha é tua, não te posso obrigar a fazer o que não quiseres!
Filita: Nem imagina quanto eu quero e quanto gosto de si, mas sei que não estou à sua altura, aos olhos do povo, sendo escrava, sou escrava para sempre e também não sei porque quer casar comigo, eu posso ser sua criada e sempre sua, mesmo sem o casamento, o qual, não seria bom para si, porque as pessoas aqui em Monsaraz nunca nos vão aceitar!
João Diogo: Pelo que percebo, também gostas de mim, era só o que me interessava saber, o resto vou resolver!
Filita: Oh senhor, veja bem o que vai fazer, as pessoas vão inventar todo o tipo de boatos! Como já lhe disse, eu posso ser sua na mesma, sem precisar de casar comigo!
João Diogo: Nem pensar numa coisa dessas, não sou desses, está decidido e vai ser assim, só faltava ouvir, o que acabei de ouvir!
O João Diogo levantou-se da cadeira e deu-lhe um beijo que a deixou atarantada, foi ter com a governanta da casa e disse-lhe que, a partir daquele momento deixava de dar ordens à Filita, ela já não era escrava, nem criada, era sua convidada!
A seguir saiu e foi falar com o Prior da Villa de Monsaraz! A Filita foi guardar a carta que garantia a sua liberdade, mas antes, beijo-a vezes sem fim! As criadas não percebiam o que se estava a passar, perguntavam à governanta, mas ela não abria a boca e, estavam muito longe de imaginar o que ai vinha!
O João Diogo, depois de cumprimentar o Prior Joaquim de Andrade, começou por perguntar-lhe que documentos tinha de tratar para o seu matrimónio! O Prior ficou surpreendido, porque não se tinha apercebido do seu namoro com nenhuma rapariga da Villa de Monsaraz, mas pensou que podia ser dos arredores e querer realizar o casamento na sua Igreja Matriz, o que era uma honra, então explicou-lhe tudo, por fim perguntou-lhe quem era a noiva? Quando o João Diogo contou ao Prior quem era a noiva, ele benzeu-se e disse-lhe que não o casava na sua Igreja e, exclamou: - Como era possível casar com uma escrava? Era uma afronta à sociedade montesarense! O "quase fidalgo" ficou zangado com o Prior e disse-lhe que a Filita já não era escrava, era livre como qualquer outra mulher, porque já tinha a carta de alforria e, sendo assim, ia comunicar e pedir ajuda à Casa de Bragança! O Prior sabia que, o "quase fidalgo" tinha a proteção do Duque de Bragança, então apressou-se a pedir desculpa e prontificou-se a tratar da papelada do casamento e a aceitar a sua marcação para o dia que o João Diogo quisesse!
A conversa ficou por ali e despediram-se com a promessa do João Diogo de voltar muito brevemente a comunicar a data em que desejam a realização do matrimónio com a Filita!
A notícia deste futuro acontecimento depressa se espalhou pela Vila de Monsaraz e arredores, começando por ser um choque para a sociedade montesarense, todos achavam que era uma afronta e, foram falar com o Prior, pedir-lhe que não autorizasse aquele matrimónio! Mas o Prior não podia fazer nada, apenas dizia que, a rapariga não era escrava e o matrimónio, tinha a benção da Casa de Bragança, estava tudo dito!
Entretanto, o João Diogo, contratou uma mestra para dar instrução literária à Filita que, com as filhas do capitão mor, já tinha aprendido a ler e a escrever, mas também para lhe ensinar maneiras de apresentação na sociedade! Comprou-lhe roupas lindas e outros adornos, já parecia uma princesa!
Após marcar o matrimónio convidou os padrinhos, os amigos e a alta sociedade de Monsaraz, mas alguns, declinaram o convite, dizendo nas suas costas, com maldade, que não podiam ir ao casamento de uma escrava! A Filita convidou para padrinhos o capitão mor e a esposa Maria do Rosário que aceitaram o convite com muito orgulho!
O capitão mor, Manoel Jorge, nunca desistiu de tentar saber a origem da Filita, ou seja, o seu percurso de vida até chegar a Montemor-o-Novo, naquele lamentável estado! Sabia que a sua mãe, também se chamava Philita e, era propriedade de um Desembargador do Reino que morava na Ajuda em Lisboa, o mesmo lugar onde também residia o negreiro que a tinha capturado e vendido! Então, pediu a vários companheiros militares que, foram regressando à companhia de cavalos aquartelada na Ajuda para tentarem chegar à fala com a escrava Philita na casa do Desembargador António de Paiva e saber o seu passado, assim como o de sua filha a Filita! O capitão mor nunca tinha recebido resposta, até que, cerca de oito dias antes do casamento da Filita, recebeu uma carta de Lisboa de um capitão de cavalos seu grande amigo, na qual, lhe explicava tudo sobre a origem da Filita! Contava-lhe que, demorou muito tempo a dar-lhe resposta, porque a chave da devassa (investigação) que tinha feito, estava no negreiro que, morava num palácio na Ajuda e, só com a ajuda de um amigo, tinha conseguido saber o que ali estava escrito! A escrava, mãe da Filita tinha vindo da Costa de África, como outros escravos e escravas e, era filha do rei de um pequeno reino que, naquela noite que o negreiro os capturou, festejavam o casamento de um dos 32 filhos do rei, todos principes e princesas, logo, a mãe da Filita era uma princesa africana, sendo, nesse caso, também a Filita uma princesa! O amigo do capitão mor, acrescentava que, além do negreiro, tinha várias testemunhas da veracidade desse facto!
Na boda do casamento da Filita e do João Diogo, no Domingo dia 25 de Setembro de 1785, o capitão mor pediu para se aproximarem, porque tinha uma novidade a dar-lhe! Quando juntou os convidados, leu a carta em voz alta, acabando por afirmar que a Filita era uma princesa, fosse de origem africana ou de qualquer parte do mundo, não deixava de ser uma princesa!
Os convidados e os noivos ficaram surpreendidos e, só passados alguns minutos reagiram, gritaram em coro: Bem haja princesa Filita e alguns fizeram-lhe a vénia, que ela levou como brincadeira! Foi mais uma novidade nas terras de Monsaraz, surgiram todos os tipos de comentários, uns de graças, outros de inveja e, outros de escárnio, dizendo que esse título não tinha validade!
Passados alguns meses, com tudo estável, o João Diogo perguntou à esposa, a princesa Filita, se estava de acordo que ele comprasse a escritura da escrava sua mãe e dar-lhe a carta de alforria, ficando a morar com eles em Monsaraz! A princesa Filita, não podia ficar mais contente, já tinha pensado nisso, mas não se atrevia a propor isso ao marido, e disse-lhe que isso a fazia muito feliz!
O João Diogo, tratou da viagem entre Monsaraz e Lisboa e no dia marcado, partiram os dois! Encontraram-se com o amigo do capitão mor em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, combinaram por carta que, para saber quem eram, o João Diogo naquele dia e hora, exibia um lenço por baixo do chapéu e foi assim que se encontraram! Foram à casa do Desembargador, dono da escrava Philita e apresentaram-se! O desembargador autorizou que a Filita falasse com a mãe, contou-lhe a sua história de vida e, o que ali os trazia! A mãe não queria acreditar no que a filha lhe contou e, sem reservas aceitou tudo, faltava a anuência do Desembargador em a vender!
A Filita disse ao marido que estava tudo falado, portanto, podia negociar a compra com o Desembargador! O João Diogo fez a proposta, mas a mesma, não foi bem aceite, ele respondeu que não era vendedor de escravos e muito menos vendia a Philita!
O "quase fidalgo" contou-lhe a razão porque a queria comprar, mas ele com arrogância continuou a dizer que não a vendia, então, o João Diogo, sem mais alternativas, disse-lhe que, sendo assim, ia recorrer ao rei!
O Desembargador ficou surpreendido e perguntou-lhe:
Desembargador: Então, diga-ma lá, senhor, porque motivo vai incomodar o rei meu senhor, com este assunto?
João Diogo: Meu senhor, sou meio filho da Casa de Bragança e, tenho instruções para em caso de necessidade pedir o seu auxílio! Agora, estou perante uma grande necessidade, porque a sua escrava Philita é minha sogra e preciso de a levar comigo e libertá-la, tenho a certeza que a Casa de Bragança, vai intervir junto do rei meu senhor, porque, aos seus olhos não fica bem um dos seus ter uma sogra escrava!
Desembargador: Tem toda a razão, senhor, leve lá a escrava, vou buscar a escritura, não quero que me pague nada por ela, eu não vendo escravos!
João Diogo: Não, meu senhor, não vou tomar posse de uma propriedade sem o compensar, digamos que, não é um pagamento, é uma compensação pela escritura da propriedade!
Desembargador: Então, sendo assim, dá-me cinquenta mil réis pela escritura!
João Diogo: Com sua licença, dou-lhe oitenta mil réis e ficamos assim!
O João Diogo, a Filita e sua mãe, estiveram mais um dia em Lisboa e no dia seguinte partiram para Monsaraz, assim que chegaram, ele foi ter com o tabelião e deu-lhe a carta de alforria, ficando a mãe da Filita, uma mulher livre!
O João Diogo, "quase fidalgo", de sangue nobre e a princesa Filita, também de sangue nobre, com origem africana, amavam-se muito e, não se importavam com os boatos, sobre eles, que existiam em Monsaraz, pensavam que haviam de passar, ele era um grande lavrador dono de boas herdades e Moinhos no rio Guadiana e Ribeira de Azevel, e tinha a benção da Casa de Bragança!
A Filita, sua mãe e família do capitão mor, não faltavam a uma missa na Igreja Matriz, mostrando muita devoção por Nossa Senhora da Lagoa, acabando por ser aceites na comunidade montesarense, havendo, apenas, uma ou outra exceção!
O João Diogo e a Filita foram pais de três filhos e de duas filhas e, só dois tinham a tez mais morena, eram mais exóticos, todos os os outros, não davam sinal da origem de sua mãe e foram muito felizes nas terras de Monsaraz!
O capitão mor e a família, com a ajuda dos afilhados, melhoraram a sua vida, libertaram-se das dívidas, as meninas fizeram todas bons casamentos, por Monsaraz, Mourão e pelos arredores!
O capitão mor, Manoel Jorge, natural das terras de Capelins, acabou os seus dias na Villa de Monsaraz, olhando a todo o momento, o lugar onde tinha nascido!
A Villa de Monsaraz, ganhou mais uma princesa, a Filita, com origem nas terras de África, mas nascida em Portugal!
Ainda hoje, existem pelas terras de Monsaraz, descendentes destas ilustres famílias.
Fim
"Texto de Correia Manuel " para Monsaraz a Caminhar

Sem comentários:

Enviar um comentário