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domingo, 21 de março de 2021

O MAQUILÃO E AS TRAIÇOEIRAS AGUAS DO AZEVEL

O MAQUILÃO E AS TRAIÇOEIRAS ÁGUAS DO AZEVEL


Hoje com as cheias que estamos vivendo, veio-me à memória o TI Manel Serafim, conterrâneo nosso, que nas décadas de 50/60 foi durante largos anos maquilão, dos moinhos de Calvinos e dos Piteiras, há época propriedade do também conterrâneo e muito conhecido o Ti Zé Luís, patriarca da família Gonçalves de onde sairia aquele que foi o último moleiro do moinho de Calvinos o Domingos Pintainho.
Tal era a assiduidade com que o Ti Manel Serafim, fazia a ligação entre as aldeias da freguesia e o moinho de Calvinos, que se orgulhava do seu fiel e possante companheiro de viagens o macho russo, de quem costumava dizer com orgulho, ponho-lhe as arreatas atadas ao taipal e não lhe toco até Calvinos, conhece os buracos todos. O macho Russo era um bonito e possante exemplar de raça muar, vezes sem conta puxou a carroça, carregada de semente ou farinha pela sinuosa estrada de Calvinos, que saía e muito embora já cortada em alguns pontos, sai do Ferragudo pelo que hoje chamamos de Monte Verde, Monte da Breca, Fonte da Breca e Porto de Calvinos. O porto de Calvinos no Azevel era sem dúvida alguma o ponto nevrálgico deste percurso, não só pelas impetuosas águas do Azevel, mas também porque parte do percurso foi aberto a força de picaretas, cuja largura não ia muito além da largura da carroça, o que pressupunha que quando submerso não havia margem para erros.
O inverno ia chuvoso, mas nada que tivesse impedido até aí a laboração do moinho, era mais uma das muitas viagens de ida e volta do Ti Manel Serafim, quando chegou ao Calvinos já o Domingos Pintainho o espera junto ao monte, bom dia Domingos dizia o Ti Serafim — bom dia Manel respondia o Domingos acrescentando, olha encosta o carro aqui à porta do monte, e descarrega aqui a semente, que o gajo está a subir que nem um bruto, (referindo-se ao Guadiana) e temos que deixar de moer e já agora ajudas-me a ir lá abaixo ao moinho com o carro para trazermos tudo aqui para o monte.
A chuva que de manhã começou miúda e mansinha foi ao longo do dia ganhando corpo e intensidade, caindo agora copiosamente deixando adivinhar as habituais e repentinas cheias do Azevel. Dizia o Domingos, Serafim olha que eu não te empato mais, não te descuides que com o que está caindo não tarda muito já não passas o Azevel, é verdade, Domingos, hoje tem caído bem o dia inteiro, vou-me já andando, mas tenho confiança no Russo ele sabe quando se pode passar, respondia o Serafim, Vê lá, Vê lá, olha que falhas todos temos e ele algum dia também se pode enganar, e olha que a água não tem agarras, se vires que não passas, volta pra trás e dormes aí no monte, terminava assim o dialogo com o Domingos Pintainho.
O Russo nome pelo qual tratava o seu macho, tinha vezes sem conta passado o Azevel, e como todos os animais, também ele tinha perceção do perigo, até aquele dia e durante anos, apenas uma ou duas vezes se recusou a passar, naquele dia e como de costume, deixou o Manel Serafim que o Russo tomasse parte na decisão, afinal apesar do racional e irracional eram uma equipa com provas dadas, quando dobrou a penúltima curva do sinuoso caminho do Azevel, depressa se deu conta do sussurro assustador das águas, o Pintainho não se tinha enganado o Azevel levava uma grande cheia, continuou a descer até à entrada do porto, e já muito perto das águas, que corriam desenfreadas arrastando consigo tudo o que encontravam à sua frente, sem que nada lhe dissesse o Russo parou, farejando as águas como tantas vezes fizera, deu dois ou três fortes sopros deixando escapar o seu temor e indecisão, o Manel Serafim folgou as arreatas tentando não ter interferência na decisão, enquanto assustado via passar perto deles enormes troncos arrastados pela impetuosa corrente, deixou as arreatas soltas e num gesto vigoroso ajoelhou-se dentro do carro abrindo os braços e com unhas e dentes agarrou-se aos taipais de ambos os lados, parecendo-lhe que seria a posição de melhor equilíbrio, o Russo tinha decidido avançar, andaram alguns metros, e o ruído dos detritos arrastados pela corrente, a bater nos taipais do carro era assustador, não tardou muito em dar-se conta, que o carro já não levava as rodas no chão, devido ao facto de ir descarregado, depressa começou a flutuar e a ser arrastado pela corrente, e consequentemente, arrastando atrás de si o Russo que se debatia ingloriamente para os tirar de ali, veio-lhe a memória as palavras do Domingos Pintainho, todos falhamos, e o macho também pode falhar, efetivamente o Russo terá falhado, esqueceu-se de que nunca antes tinha acontecido ir descarregado, o que fazia com que o carro perdesse aderência e começasse a flutuar, a corrente arrastava-os a caminho de uma morte certa, felizmente o carro não se virara, o Manel Serafim tentava manter o equilíbrio agarrado aos taipais, enquanto o Russo se debatia, um enorme estrondo, seguido de um solavanco e um forte embate fê-los ficar encalhados num enorme Freixeiro, no meio do desespero de quem caminha para a morte, ambos perceberam que essa poderia ser a única hipótese entre mil, de pelo menos momentaneamente não morrerem afogados, o Manel Serafim conseguiu alcançar o Freixeiro e subir por ele enquanto pode, enquanto o Russo percebeu que deveria ficar o mais imóvel possível para não desencalhar o carro.
As horas pareciam intermináveis, enquanto a roupa encharcada aumentava a sensação de frio no cimo do Freixeiro, o desânimo quase o dominava, veio-lhe à memória a mulher e os filhos e toda uma vida de trabalho árduo neste Alentejo, que às vezes parece impiedoso com aqueles que pouco têm. AGUENTA RUSSO alguém há de vir à nossa procura.

Já o serão ia largo e a mesa posta para a ceia deixava antever que algo não estava bem, não era habito o Manel Serafim chegar tão tarde, quando muito ao sol-posto, a angústia foi aumentando com o passar das horas, respirava fundo tentando recuperar o ar que lhe faltava oprimido por aquele aperto no peito, olhem lá filhos! Vamos pedir ajuda aos vizinhos, mas nós temos que ir à procura do pai, a esta hora se não ficou no moinho onde quer que esteja já não está por bem, dizia a Ti Estrudes.
Entre familiares e vizinhos mais chegados reuniram uma pequena equipa que depressa tomou a estrada de Calvinos, o Azevel era algo em que ninguém queria pensar, mas que, no fundo a todos atormentava, pode ser que tenha tombado o carro ali no Má Passo, ou que esteja atascado à Figueira do Breque e não seja capaz de sair, também não podemos esquecer que pode não ter querido meter-se à água no Azevel e ter ficado lá no Monte de Calvinos, e amanha por aí aparece, concluía um dos vizinhos, todos se recusavam a desenhar uma tragédia.
As águas não davam sinais de baixar, o frio próprio das chuvosas noites de inverno, cobrava a sua parte, as mãos enrregeladas, tinham cada vez mais dificuldade em manter-se firmemente agarradas ao Freixeiro, olhava para baixo e imaginava que também o Russo atolado em água até ao pescoço, e enfrentando a força da corrente seguramente estaria a passar por grandes dificuldades, AGUENTA-TE RUSSO que alguém há de vir á nossa procura, voltou a olhar novamente para aquilo que lhe parecia ser a direção da estrada, e por uns momentos pareceu-lhe ver luzes, luzes difusas, fracas de intensidade, mas fortes de esperanças, pensou, são eles que vêm aí, seguramente a minha Estrudes os meus filhos e algum amigo ou vizinho? Sabia que àquela distância ainda não eram audíveis os seus gritos, mas, começou imediatamente a gritar ESTOU AQUI, ESTOU AQUI.
Aquilo em que nenhum queria pensar estava cada vez mais perto, estavam já na descida para o Azevel e do Manuel Serafim nem rastos, à distância a que estavam ouviam o enorme barulho das revoltosas águas, foram-se aproximando, mas a escuridão da noite pouco ou nada deixava ver, apenas o brilho das águas e pouco mais.
Agora já não tinha dúvidas, as luzes seriam três ou quatro o que correspondia a três ou quatro lampiões, são eles, que já estão aqui à minha procura! Foi buscar forças onde já não as tinha, mas gritou, gritou com tanta intensidade que do outro lado do rio alguém disse, calem se lá! Parece que soa alguém a gritar lá do meio do rio, com a voz embargada de emoção exclamou a Ti Estrudes é a voz do meu Manel! Senhor dos Passos nos ajude, mas está vivo, ó filhos vão já ao Ferragudo levar a notícia e pedir às pessoas para virem ajudar a salva-lo, que eu e os vizinhos passamos aqui a noite.
Apesar de todo encharcado e das várias horas que levava em tão perigosa situação, renasceu nele a esperança de sair dali com vida, a fogueira que os familiares acenderam para passar a noite, apesar da distância e a impossibilidade física de isso acontecer, também lhe aquecia a alma, nunca antes um lume o aqueceu tanto, nem nas gélidas manhãs de geadas em que as mãos se engadanhavam, era um calor intenso, aquela chama era uma chama de alento e esperança de conseguir sair de tão perigosa situação falava, falava para ele e para o Russo, vamos aguentar Russo, ainda não estamos mortos, talvez não seja desta vez que o Azevel nos engole.
No Ferragudo vários eram aqueles, que esperavam ansiosamente que alguém voltasse e pudesse trazer um pouco de luz, sobre o que teria acontecido ao Manel Serafim, olhos postos na estrada de Calvinos alguém exclamou, parece que vem lá ao Monte do Ti Rela uma luz, será que já trazem alguma notícia? Mas não vêm todos, eram três ou quatro lampiões e só lá vem um, exclamava outro dos presentes, a incontornável ansiedade fez com que fossem descendo a rua ao encontro de quem lá vinha, era um filho do Manel Serafim, já achamos o meu pai, está lá no meio do Azevel em cima dum Freixeiro, mas está vivo, vamos avisar as pessoas e de manhã vamos todos ver se o conseguimos salvar, dizia o filho do Manel Serafim.
Indiferente ao silencio da noite a notícia foi-se espalhando como fogo em seara seca, de madrugada eram já muitos aqueles, que tentavam organizar-se, recolhendo tudo o que lhes parecia ser útil para semelhante operação de salvamento, cordas, pás, enxadas e escadas. Mal se começou a ver, começaram a chegar ao Ferragudo os grupos do Telheiro e de Monsaraz, de burro, a pé ou de carroça, ninguém queria ficar indiferente, de Monsaraz além de muita outra gente vinha também o Manuel Pedinho, intrépido contrabandista, de quem se dizia ser excelente nadador, tinham sido várias as vezes que se metera à água para escapar aos Carabineiros ou aos Guardas Fiscais, e de quem se contava também que quando os meloais eram no Mercador, (herdade do lado Mourão) pela calada da noite ia roubar melancias e voltava a cruzar o Guadiana com elas.
Era impossível ficar indiferente a tamanho gentio, deixou momentaneamente emocionar-se e as lágrimas corriam-lhe teimosamente, indo diluir-se nos fios de água que lhe escorriam da cabeça, estava tremulo de frio e empapado em água, mas, agora mais que nunca não podia vacilar, era hora de esperança, esperança de sair dali vivo e poder voltar para junto dos seus e agradecer a toda aquela gente.
Ó! Ti Estrudes não chore que eu vou tirar dali o Manel, dizia o Manel Pedinho, DEUS TE OUÇA FILHO e que o SENHOR DOS PASSOS TE AJUDE respondia a Ti Estrudes. Despiu as calças e a camisa, deixando a descoberto o improvisado fato de banho, que não era mais que umas ceroulas compridas atadas em baixo. Aí nesse carro que veio do Telheiro vêm boas cordas, vão lá desenrolando duas e deem-me as pontas, dizia o Manel Pedinho, tinha a partir de ali assumido o comando das operações, quando eu chegar ao Freixeiro vou atar lá uma corda, essa corda, vocês atam-na ai ao carro de parelha e deixam-na mais ou menos esticada, a outra corda, vou atá-la por debaixo dos braços do Manel Serafim e vocês só a vão mantendo esticada sem fazer força, é só se a água o quiser levar que vocês aguentam e puxam, concluía o Pedinho perguntando, ENTENDIDO ? Nadador experimentado, com as duas pontas da corda na mão, caminhou dez ou doze metros para montante, para que a própria corrente o arrastasse até ao Freixeiro, o que viria a acontecer, tal como combinado, prendeu firmemente uma das cordas ao Freixeiro e esperou que os de terra prendessem a outra ponta ao carro, experimentou a tenção da corda e exclamou para si, está boa! Vá Manel deixa-te lá de choraminguices e sem medo desce lá até aqui, que chegou a hora de ires abraçar os teus filhos, tremolo e meio desorientado pelas longas horas de espera passadas em tão adversas condições, obedeceu de imediato e desceu até onde estava o Pedinho, assustava-o estar com a agua até ao pescoço, mas conhecia o Pedinho e sabia do que ele era capaz, tinha confiança nele, vamos lá atar esta corda aí ao teu corpo por debaixo dos braços, dizia o Pedinho, e agora vens atrás de mim agarrado com unhas e dentes à outra corda e vais mudando os braços agarrado à corda, não tenhas medo, se alguma coisa acontecer eles não te deixam afogar e puxam a corda que tens atada ao teu corpo, concluía o Pedinho.
Aquilo que lhe faltava em forças, sobrava-lhe em vontade de sair de ali, tudo correu como previsto e não tardou estavam em terra firme, era um momento de autêntico júbilo, uns choravam, outros batiam palmas e muitos eram os que davam vivas ao Manuel Pedinho.
Passaram-se alguns minutos e refeitos de tão grande emoção sobressai novamente a voz do Pedinho, e AGORA VAMOS SALVAR O RUSSO, enquanto perguntava, quem é que tem aí uma navalha que corte bem e que seja pequena porque tenho que a levar na boca, logo alguém se prontificou a dar-lhe a navalha ideal, com a corda ainda atada ao Freixeiro tudo era agora mais fácil e não tardou estava junto ao carro e ao Russo, cujo olhar dócil parecia perceber que tinha chegado a hora de o salvarem, deixou que o Pedinho desatasse a corda do Freixeiro e a atasse ao seu pescoço, enquanto este, recomendava para terra aguentem-se com a corda, não deixem o macho ir água abaixo, cortou todas as cordas e correias que ligavam o Russo ao carro ajudando-o a libertar-se deste. Conta quem viu que foi comovente ver o macho conduzido pelas arreatas atrás do Pedinho, ambos nadando para a margem e para a vida.
Pelos relatos que recolhi, não havia consenso relativamente ao carro, se o tiraram nesse dia ou passado dias.
Muitas foram as vidas que se perderam no Guadiana e seus afluentes, felizmente desta vez tudo acabou em bem e o Russo depois de um largo período a recuperar das multiplas feridas que sofreu continuou a levar o trigo e a trazer farinha acompanhado pelo Manel Serafim.
Obrigada a Maria Catarina Cardoso, Francisca Gonçalves, Catarina Berjano e

"Fotos e texto Isidro Pinto"





1 comentário:

  1. Simplesmente maravilhoso, parece que estava a viver cada momento descrito, não consegui parar nem por um segundo!
    Obrigada 🙏

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