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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A TI ANA ROLA E O Dr. RAMOS

 A TI ANA ROLA E O Dr. RAMOS


Não serão já muitos mas alguns conterrâneos haverá que ainda se recordam da tão carismática figura do doutor Ramos, médico veterinário de reconhecido valor e muito admirado nos concelhos de Reguengos, Mourão, Moura, não só pelas suas capacidades profissionais mas também pelo seu elevado sentimento humanista, muitas eram as vezes que aos pobres nada cobrava. Monsaraz desde os tempos mais remotos sempre viveu condicionada pelos difíceis acessos, uma das fornas de o minimizar era a utilização do gado muar, quase todas as famílias tinham um burro, para carregar a lenha, para ir buscar a água ou para lavrar as íngremes encostas, de onde com muito esforço arrancavam à terra, as batatas, os grãos, as favas e algum trigo ou centeio para o fabrico do pão. Era do conhecimento geral que não se podia deixar fartar os burros de palha de favas, creio por lhe causar obstipação podendo leva-los à morte. Por um pequeno descuido deixou a Ti Ana Rola que a burra comece mais palha de favas do que devia, passados já alguns dias e com a burra a piorar de dia para dia, não tiveram mais remédio que chamar o Dr. Ramos, que após imenso e árduo trabalho conseguiu salvar a burra. Aliviada por ver a sua burrinha fora de perigo pergunta a Ti Ana Rola ao Dr. Ramos, Dr. Quanto lhe devemos ? Deixa estar não te preocupes não é nada é de graça respondia este. Não cabendo em si de contente exclamou a Ana Rola, BENDITO SEJA O SR. DOS PASSOS QUE SE SALVOU A MINHA BURRINHA. Ai foi o Sr dos Passos !!! Eu é que me fartei aqui de trabalhar e agora foi o Sr. Dos Passos !!! vai lá buscar o dinheiro para me pagares que acabou-se o de GRAÇA dizia o Dr Ramos.

Obrigado amigo António Rodrigues (Marreneco) por mais este pedaço de história das nossas gentes.

"Texto e foto de Isidro Pinto"

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A LENDA F O MILAGRE DO SENHOR JESUS DOS PASSOS

 


A Lenda do Milagre do Senhor Jesus dos Passos, em Monsaraz

Nos finais da centúria de 1500, uma rapariga chamada Maria Roseta, morava numa casa pequenina junto ao Castelo da Vila de Monsaraz, deixada por uma tia, vindas não se sabia de onde e, após a morte dessa tia, ficou a morar com o seu gato preto! 

A Maria Roseta era muito pobre e franzina e toda a gente dizia que era feiticeira, porque sabia rezas e mezinhas, com as quais curava muitas maleitas, mesmo assim, não era respeitada pela maioria dos montesarenses e sempre que saia à rua era alvo de troça, risos, assobios e palavras ofensivas, mas muitas dessas pessoas ou familiares, quando se sentiam mal, em segredo, corriam a sua casa pedir-lhe ajuda e ela tratava todos os males com muita sabedoria e dedicação! 

No dia 9 de Junho de 1594, era Corpo de Deus, e os ranchos já andavam a ceifar pelos campos de Monsaraz, cerca das 10 horas, quando as foices entravam pelas searas, o sol, repentinamente, desapareceu, os ceifeiros e ceifeiras ficaram assustados, pararam o trabalho e os seus olhos virararm-se para o lado do astro rei e viram uma nuvem negra que o ofuscava e não deixava passar a luz! 

Os montesarenses ficaram aflitos sem perceber o que se estava a passar e pensaram que, seria alguma trovoada sem trovões, mas naquele momento começaram a cair milhares de gafanhotos esfaimados que consumiam os cereais como se fosse fogo! O combate aos insetos começou, imeditamente com tudo o que tinham à mão, mas era uma luta sem tréguas e não demorou a juntar-se gente á procura de ajuda ou de alguma solução para tão grande problema, mas apesar de surgirem muitas ideias, devido á desconformidade de insetos, depressa caiam por terra! 

À medida que o tempo passava, a situação piorava, então, alguns montesarenses decidiram pedir ajuda à Maria Roseta, porque, diziam que ela sabia mezinhas para todos os males do mundo e não tinham outra alternativa! 

Um grupo de homens e mulheres, correram pelas ladeiras de Monsaraz a pedir ajuda à Maria Roseta, mas ela respondeu-lhe que não tinha nenhuma mezinha para aquele mal, não podia fazer nada, perante a decepção e a insistência ela disse-lhe que sabia quem podia ajudar, deviam fazer, imediatmente uma procissão aos campos de Monsaraz com Nosso Senhor Jesus dos Passos! 

Os montesarenses, não veneravam o Senhor Jesus dos Passos e interrogaram a Maria Roseta se a procissão não podia ser a outro Santo ou Santa? Ela afirmou que não, só podia ser o senhor dos Passos, então o povo já de cabeça perdida correram à Igreja da Misericórdia e a rezar levaram a imagem do Senhor dos Passos que tinha sido oferecida por D. Teodósio II, Duque de Bragança, poucos anos antes e, nem esperaram pelo Padre que quando se apercebeu partiu a correr com a batina ao pescoço atrás da procissão, mas assim que, a imagem do Senhor dos Passos saiu da Igreja da Misericórdia, os gafanhotos que já estavam nas terras de Monsaraz, começaram a morrer e quando avistaram a grande nuvém de gafanhotos, o sol quase, repentinamente, começou a brilhar, porque a nuvem desceu e os insetos começaram a cair mortos sobre as águas do rio Guadiana, sendo impedidos de alcançar os campos de Monsaraz! 

O povo de Monsaraz não conseguia perceber o que tinha acontecido e, surgiram muitas versões sobre o acontecimento, no entanto, no dia seguinte a vida rural voltou ao normal, mas não se falava noutra coisa e o povo foi-se apercebendo do risco que correram, ficando cada vez mais claro que tinha acontecido um milagre de Nosso Senhor Jesus dos Passos que, os tinha livrado da praga de gafanhotos, logo da fome certa, por isso, tinham de encontrar uma forma de agradecimento, então, marcaram uma reunião popular, onde decidiram que entre outros atos de fé, todos os anos depois das colheitas a Vila de Monsaraz, por gratidão, fazia uma procissão ao Senhor Jeusus dos Passos no segundo Domingo do mês de Setembro e, como sabemos, essa tradição ainda hoje se mantém! 

Ainda nessa reunião popular, alguém lembrou que, se o milagre tinha acontecido, devia-se à Maria Roseta, porque, ninguém imaginava pedir auxílio ao Senhor Jesus dos Passos, por isso, ela não podia ser  esquecida e, naquele momento, alguns lavradores de Monsaraz que estavam presentes, prontificaram-se a dar-lhe uma casa nova e todos os bens alimentares, até ao fim da sua vida! 

A partir daquele dia, os montesarenses que troçavam dela, mostraram-se arrependidos e, em vez de troçar, começaram a venerá-la e quando a Maria Roseta foi prestar contas a Deus, todos os montesarenses lhe prestaram homenagem de agradecimento, acompanhando-a até à sua última moradal 

A casa da Maria Roseta, já não existe, porque teve de ser sacrificada para dar lugar à construção das novas muralhas da Vila de Monsaraz, durante a guerra da restauração. 

Bem Hajam, Marias Rosetas!

Fim 

Podemos garantir que, existem documentos régios de Castela dessa época, a testemunhar a ocorrência desta, ou de outras pragas semelhantes, de gafanhotos nesta região e que deixaram as populações a passar fome, porque esses insetos devoraram os cereais e as pastagens do gado.

Texto: Manuel Correia 

Fotografia. Isidro Pinto

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

O BUNDA E A LEBRE DA RUA DIREITA

 

O Bunda e a lebre da rua Direita




 Ao falar de vizinhos apenas com uma casa de permeio morava o meu amigo Bunda, bom homem com quem mantive e mantenho uma óptima relação de amizade. Era mais uma noite de Agosto de um calor insuportável em que a única forma de amenizá-lo era abrir as portas, não só para tornar o serão mais aprazível mas também para que as casas refrescassem um pouco para o dia seguinte, não querendo perder pitada da televisão estava o Bunda e a família, ti Rosa sua esposa e os filhos Domingos José, Francisco, e José Domingos na sala de entrada, que normalmente neste tipo de habitações alentejanas é também sala de estar. Na televisão o José Mestre Baptista toureava já o segundo toiro, da corrida do campo pequeno, a falta de nitidez do velhinho aparelho era notória queixava-se insistentemente a ti Rosa ó Tonho és sempre a mesma coisa estou farta de te dizer para ires acima do telhado arranjar a antena e tu nada, agora, está a dar a tourada e isto só se vê esta chuva, o Bunda fazia ouvidos de mercador. Apesar de tudo isto, a atenção era redobrada, apenas o José Domingos havia adormecido no camalho, as portas estavam abertas de par em par e para que os mosquitos não entrassem a única luz existente era a da televisão, a duzentos metros mais acima mais ou menos junto á porta do Lumumba acabava de chegar um casal de turistas de meia idade e que, supostamente, haviam morto uma lebre na estrada que se apressaram a tirar do porta bagagens, para estupefacção de ambos assim que o abriram a lebre ó pernas para que te quero e de um salto em escassos segundos já corria rua abaixo, completamente desorientada corria agora na direcção do castelo, a perseguição era feita não só pelo casal mas também por muita outra gente que aquela hora estava sentada na rua ao fresco, a estupefácção era geral, até um pachorrento cachorro que dormitava junto ao pelourinho não quis acreditar no que os seus olhos viam e não demonstrou o menor interesse de correr atrás dela, até que não se sabendo bem porquê resolveu a dita lebre entrar portas dentro para a casa do Bunda, imagine-se o espanto e confusão a perseguição era agora feita entre mesas e cadeiras e apenas com a luz que emanava da televisão. Não me recordo como terminou este episódio mas suponho que nada bem para a lebre.

"Texto e foto Isidro Pinto"

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

HOMENAGEM À MINHA TERRA NATAL MONSARAZ.

 HOMENAGEM À  MINHA TERRA NATAL MONSARAZ.

(Casa do Dr. Queimado)


QUANDO DEUS CRIOU O MUNDO

PARA SUA OBRA OBSERVAR

SUBIU AO CIMO DE UM MONTE

PRA TODO O MUNDO AVISTAR

MAS O MONTE ERA BAIXINHO

O QUE A DEUS NÃO SATISFAZ

E DIZ PARA O MONTEZINHO

TU UM ALTO MONTE SERÁS 


E O MONTE NESSE MOMENTO 

CRESCEU COM TAL PRESTEZA

QUE DEUS POSTADO NO CIMO

VIA TODA A NATUREZA

COM TÃO LARGO HIRIZONTE

DEUS FICOU MUITO ENCANTADO

E DISSE SERÁS UM BELO MONTE

E POR MIM ABENÇOADO 


UM ALTO MONTE SERÁS 

E MUITO BEM POVOADO

DEUS AINDA ACRESCENTOU

E O NOME ENTÃO SE FORMOU

DESTA MINHA LINDA TERRA

QUE TANTA BELEZA ENCERRA

E SE CHAMA MONSARAZ 


NASCIDOPOR DIVINA GRAÇA 

HÁ EM TI MUITA BELEZA

ÉS UMA PÉROLA ENGASTADA

NO COLAR DA NATUREZA

ÉS UM CANTEIRO PERFUMADO

COMO OUTRO NÃO HÁ IGUAL

NESTE MEU PAÍS ADORADO

QUE SE CHAMA PORTUGAL


OH MONSARAZ

TU ÉS TERRA ABENÇOADA

SÃO PARA TI OS PRIMEIROS

SORRISOS DA MADRUGADA

OH MONSARAZ 

TU ÉS DA PÁTRIA UM ALTAR 

ONDE ALMAS DE HERÓIS 

A HORAS MORTAS VÃO REZAR

OH MONSARAZ 

ÉS A TERRA ONDE EU NASCI

E POR MUITO EU TE AMAR

FIZ ESTES VERSOS PARA TI


AUTOR: FRANCISCO CAEIRO QUEIMADO.


OBRIGADO Amigo José Jose Pereira por teres sido tão fiel depositário de esta pequena relíquia que tiveste a amabilidade de fazer chegar até mim. Nunca é  demais recordar-mos este pequeno grande homem o Dr. Queimado

segunda-feira, 17 de maio de 2021

A LENDA DO OUVIDOR DA VILA DE MONSARAZ


A lenda do Ouvidor da Vila de Monsaraz 

No ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quinhentos e trinta, a Vila de Monsaraz estava no auge em termos sociais e económicos, sendo considerada a jóia da Sereníssima Casa de Bragança, repleta de gente influente, fidalgos, escudeiros e lacaios, alguns frequentavam a Corte do Rei D. João III, o Piedoso, mas devido à sua fama, também atraía muitos indesejados, maltezes, vadios e malfeitores que vagueavam em grupos pelo reino, em busca do que podiam apanhar sem trabalhar!

A Villa de Monsaraz, nessa época, estava a tornar-se uma terra sem lei e chegavam muitas queixas à Corte a pedir que fosse feita justiça, porque a Ouvidoria não tinha Ouvidor, facilitando a criminalidade, com a agravante da proximidade da fronteira com Castela, por onde entravam e saiam muitos criminosos! 

Depois de confirmar o fundamento das queixas, o Rei D. João III, nomeou João de Sousa que, tinha fama de ter mão pesada contra o crime, ganhando com isso, o apelido de "sem coração" por ser impiedoso, para Ouvidor da Ouvidoria da Vila de Monsaraz! 

Um Ouvidor era a designação dos magistrados ou juízes que superintendiam na justiça das terras senhoriais! As suas funções eram semelhantes às dos corregedores nas terras diretamente dependentes da Coroa! As terras sujeitas a corregedores eram chamadas comarcas ou correições e as sujeitas a ouvidores eram chamadas ouvidorias, como era o caso da Vila de Monsaraz, visto ser uma Vila senhorial, da dita Sereníssima Casa de Bragança!

Quando o Ouvidor, ou juíz João de Sousa chegou à Vila de Monsaraz, nos finais do segundo decénio de 1500, confirmou que, a justiça estava um caos, a cadeia era assaltada e, os presos libertados por grupos de malfeitores, portugueses e castelhanos, sendo necessário começar, imediatamente a repor a ordem e começou a fazer julgamentos apressados, bastava um homem bom, apresentar uma queixa, fundamentada e com as devidas testemunhas,  se fosse caso de sangue, ou tentativa de homicidio, a sentença era a condenação à Forca, sem fazer mais averiguações, como era obrigação do Ouvidor! 

A justiça do Ouvidor João de Sousa, o "sem coração", começou por ter bons resultados, porque obrigou muitos vadios e malfeitores a afastarem-se da Vila de Monsaraz e, aliviou a criminalidade, mas isso não alterou o seu método de fazer justiça, era Ouvidor, mas não estava para perder tempo a ouvir o que devia ouvir, dizia que, havendo testemunhas dos crimes, embora em muitos casos compradas, não era necessário ouvir ou investigar mais nada, condenando eventuais inocentes à Forca e, não aceitava os pedidos dos suplicantes, mesmo dos padres que, muitas vezes tinham provas que, os condenados estavam inocentes! 

A justiça do Ouvidor, depressa caiu na  injustiça, porque, aumentavam os que eram enforcados estando inocentes e nesses casos, havia pais que deixavam as casas cheias de filhos desamparados, com fome, revoltando qualquer homem justo, mas em nenhum caso o "sem coração" aceitava pedidos de clemência, mesmo que fossem de fidalgos ou dos padres de Monsaraz! 

Enquanto os erros da justiça do Ouvidor foram sobre os mais pobres que, por medo, as famílias pouco se queixavam, não chegavam à Corte,  mas quando bateu à porta dos mais influentes e o Ouvidor não atendeu aos pedidos de clemência, nem de mais investigação, começaram a chegar queixas ao Rei D. João III que, não dava resposta, porque achava que o Ouvidor estava fazendo um bom trabalho na Vila de Monsaraz e, os queixosos que, eram cada vez mais, secretamente, organizaram um grupo de apoio e planearam o afastamento do Ouvidor da Vila de Monsaraz!

O grupo dos queixosos tinha aliados do clero, vários padres, amigos e familiares na Corte que, começaram a investigar o passado do Ouvidor, ou seja, a procurar a existência de atos que o comprometessem e, não foi difícil descobrir que, tinha processos judiciais arquivados, por adulterar com mulheres casadas que, era crime, embora não lhe tivesse acontecido nada por falta de provas, mas ficaram a saber que, muito fácilmente perdia a cabeça por mulheres bonitas, logo, seria este o caminho que tinham de seguir para o apanhar em falso!

Nessa época, entre outros, residia e trabalhava na Vila de Monsaraz um tabelião, casado com uma mulher muito mais nova, era alta, esbelta, muito linda e vaidosa, com porte duvidoso que, não se poupava a expôr-se nos seus passeios pelas principais ruas da Vila, virando do avesso, a cabeça de muitos homens!

Não foi necessário muito tempo para o Ouvidor perder a cabeça pela mulher do tabelião, a tal ponto que, não se importava de dar nas vistas, talvez por se achar muito poderoso, uma situação que dava jeito ao grupo dos queixosos, os quais, com muito cuidado, começaram a registar, com testemunhas influentes, os encontros do Ouvidor com a mulher do tabelião, a data, horas e lugares onde se encontravam, reforçado com a acusação de desleixo pelo seu dever de Ouvidor que, depois era mal desempenhado, com erros e condenações de inocentes à Forca! 

As provas foram reunidas durante meses e bem organizadas, com testemunhas muito conceituadas, homens bons, padres, lacaios, lavradores e outros, sendo o processo enviado ao rei D. João III debaixo de grande segredo, na acusação escreviam que, o Ouvidor andava a adulterar com a mulher de um tabelião de Monsaraz e devido a isso, não cumpria a sua missão, condenando inocentes à Forca, devido a não ouvir ou investigar o que tinha de ouvir, pelo que,  pediam o seu afastamento da Ouvidoria da Vila de Monsaraz! 

O processo chegou às mãos do Rei D. João III, com o parecer de altos magistrados da Coroa, com indicação que o Ouvidor era recorrente e com a proposta de ser afastado da Ouvidoria da Vila de Monsaraz, mas o rei, não só o mandou afastar do cargo, como também, emitiu uma ordem de prisão, com indicação de ser julgado pelos crimes de que era acusado, sendo o Ouvidor João de Sousa encarcerado na cadeia do Castelo de Monsaraz! 

A prisão do Ouvidor chegou, imediatamente aos ouvidos das gentes da Vila de Monsaraz, ficando a maioria muito contentes, porque, não sabiam quando podiam ir parar à Forca, por qualquer acusação falsa, como tinha acontecido a alguns montesarenses, mas começaram a dizer que, era uma prisão de fachada, para acalmar a população, porque, sabiam que na cadeia não lhe faltava nada, tinha tudo do melhor e, vários guardas, noite e dia a guardar a cadeia para o proteger contra inimigos que lhe juravam pela pele, por ter condenado à forca, filhos, familiares ou amigos que, estavam inocentes, ou tinham cometido pequenos crimes que, não podiam ser puníveis com a forca e ouvia-se que, lhe rezavam muitas pragas e as feiticeiras faziam mezinhas para tirar o coração ao sem coração! 

O seu bem estar na cadeia, era comentado pela Vila de Monsaraz e, as ameaças contra ele, aumentavam dia a dia, ficando a sua segurança em causa, pelo que, após ser dado conhecimento ao Corregedor da Corte, foi decidido que seria transferido para a prisão da Corte em Évora! 

A saída do Ouvidor da Vila de Monsaraz para Évora foi marcada, secretamente para uma noite pelas duas horas da manhã, quando a Vila estivesse a dormir e, não dessem por nada, mas nessa noite, quando o capitão da guarda o foi acordar para se preparar e partir, o Ouvidor estava morto sobre a cama! 

O capitão da guarda que fazia parte da escolta, foi a correr chamar o alcaide e o físico (médico) do castelo, este para verificar se ainda havia sinais vitais, uma vez que, achava que o corpo do Ouvidor ainda estava quente e, quando o físico e o ajudante, enfermeiro, o viraram e a luz dos archotes o iluminaram, os presentes, ficaram paralisados a olhar uns para os outros, sem dizerem uma palavra, por fim, o físico exclamou: - Sem coração! Tinham arrancado o coração do Ouvidor! 

Quando foi comunicado ao alcaide que, estava do lado de fora da cadeia, este não queria acreditar, depois de se inteirar da situação, começou a interrogar os guardas que estavam de serviço, separados, um a um, e contaram todos a mesma versão, a porta da cadeia estava fechada até o capitão ali chegar e, antes nunca se abriu, por isso, ninguém lá podia entrar e, acabavam exclamando que, decerto, se tinha suicidado, não havia outra explicação, mas ainda não sabiam da ausência do seu coração!

No interrogatório, o alcaide perguntou aos guardas o que tinham visto e ouvido antes da triste descoberta e todos responderam que tinham visto o Ouvidor a deitar-se na sua cama depois da ceia, mas nenhum tinha ouvido nem gritos nem gemidos, nem ai, nem ui, mas todos diziam que, tinham visto um grande gato preto com uns olhos que iluminavam a noite, nunca visto no castelo, a sair por entre as grades do portão da cadeia e que se tinha sumido na última torre do castelo a da esquerda, alguns guardas, diziam que tinham visto mais do que um gato, fazendo o mesmo percurso! 

Depois das respostas dos guardas, o alcaide fez um relatório do sucedido e escreveu uma carta a pedir instruções e ajuda muito urgente, por estar perante um caso insólito, um grande mistério e, mandou dois mensageiros a Évora, onde chegaram cedo e entregaram os documentos ao Corregedor da Corte! 

Tratando-se da morte de um magistrado e do tipo de crime, ainda nesse dia, à tardinha, chegou uma equipa com os melhores investigadores e físicos da Corte, ao castelo de Monsaraz, os quais, quando se inteiraram sobre o que tinha acontecido, ficaram incrédulos e quiseram começar logo a trabalhar, isolaram a área da cadeia, para não ser devassada e passaram o resto da tarde e a noite a interrogar os guardas e toda a gente com acesso ao castelo, e de manhã, começaram a analisar ao milímetro o espaço da cadeia e do castelo e, no dia seguinte, alguns passaram para o exterior a interrogar os montesarenses residentes nas imediações, sobre o que tinham ouvido ou visto de estranho, relacionado com o caso, nos dias anteriores, mas passadas quase duas semanas a investigar, estavam muito dececionados no ponto de partida, sem descobrir nada de novo, ninguém tinha visto nem ouvido nada, restava-lhe a confirmação que, quem tinha assassinado o Ouvidor tinha passado pela torre que os guardas referiam, onde estavam alguns vestígios de sangue, mas não havia sinais do coração do infeliz! 

Os investigadores e os físicos escreveram nos relatórios que, a morte do Ouvidor devia ter sido concertada entre os guardas de serviço, muito bem concertada, mas não conseguiam provar, porque, tinham sido interrogados até à exaustão e todas as respostas batiam certas, o coração e o sangue tinham desaparecido e, depois de virar a Vila de Monsaraz do avesso não tinham encontrado nada, a não ser na dita torre, mas não escreveram uma palavra sobre os gatos pretos e finalizaram escrevendo que, o processo ficava em aberto, esperando desenvolvimento sobre o misterioso crime!

 Quando a notícia da morte cruel do Ouvidor alastrou pela Vila de Monsaraz, toda a gente ficou chocada, não era aquele o castigo que desejavam, embora, ele tivesse condenado muitos inocentes à forca, mas o crime era muito hediondo e assustava muita gente! 

Quando começaram a ouvir dizer que, os guardas do castelo tinham visto os grandes gatos pretos a sair da cadeia e que se tinham sumido na torre da esquerda, na qual tinham encontrado sangue do Ouvidor, não tiveram dúvidas que os criminosos estavam descobertos, tinha sido obra das feiticeiras, decerto, o Ouvidor tinha condenado à forca, algum filho ou outro familiar inocente e fizeram justiça pelas suas mãos, por isso, a torre do castelo de Monsaraz onde os gatos pretos se sumiram naquela noite do crime, ficou a ser conhecida pela torre das feiticeiras! 

O Ouvidor foi sepultado sem coração, o qual, nunca mais foi encontrado e, ainda se encontra perdido, dentro, ou nas imediações do castelo de Monsaraz.

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Fotografia: Isidro Pinto 


sábado, 1 de maio de 2021

FRESCO EM MONSARAZ DO BOM E DO MAU JUIZ

  •  FRESCO EM MONSARAZ DO BOM E DO MAU JUIZ


Há em Monsaraz um fresco que encerra um mistério e que é caso único em Portugal: o Bom e o Mau Juiz é uma obra de arte inigualável em Portugal e de que ficámos a conhecer pistas para a sua interpretação.

Quando em 1958 uma intervenção nos antigos Paços do Concelho de Monsaraz revelou um fresco de dois painéis, a descoberta teve direito a primeiras páginas nos jornais. Percebeu-se imediatamente que se estava perante algo excecional, mas cuja real importância só ficou verdadeiramente estabelecida quando os historiadores de arte se debruçaram sobre o achado e deram o veredito: o tema do fresco é não só um caso único em Portugal como apenas tem paralelo com a alegoria do bom e do mau governo que existe no Palazzo Pubblico da cidade italiana de Siena.

O fresco de Monsaraz tem sido estudado desde então e ganhou mesmo um justificado protagonismo na bela localidade alentejana, sendo peça principal do Museu do Fresco, no largo principal da vila.

O fresco é composto por dois painéis sobrepostos, representando o primeiro a justiça divina e o segundo a justiça terrena. É aqui que encontramos o bom e o mau juiz, numa alegoria à aplicação da justiça que tem muito que se lhe diga

O primeiro mistério que o fresco apresentou aos historiadores foi o da sua data de execução. Os primeiros a debruçar-se sobre o assunto consideraram que era muito anterior ao que estudos posteriores vieram a demonstrar. Estamos perante uma peça de finais do século XV e hoje é quase consensual dar-lhe uma data precisa com uma história dentro. 

Primeiro, a descrição. Em cima, temos Cristo Pantocrator numa cena divina de Juízo Final do apocalipse. No painel de baixo é representada a justiça terrena e o bom e o mau governo. À esquerda vemos o bom juiz, mimetizando a postura de Cristo e ladeado por dois anjos. O bom juiz olha diretamente para quem vê o fresco e com o dedo aponta para o acusador. Do lado esquerdo surge o mau juiz, de duas caras e com o diabo a pôr-lhe a mão no ombro e a partir a vara de justiça. Este juiz é ladeado por duas figuras. Uma corrompe-o com dinheiro, a outra com perdizes, numa simbologia muito utilizada então.

A historiadora Ana Paula Amendoeira explica o fresco do Bom e do Mau Juiz

E é esta história que permite hoje aos investigadores apontar o ano de 1498 ou 1499 como o da data da execução do fresco, tendo sido seu mandante D. Jaime, 4º Duque de Bragança. Mas recuemos no tempo e nas personagens. Em 1483, reinava D. João II. Na sua tentativa de fortalecer a Casa Real levou muitos nobres a insurgirem-se. Entre eles, estava D. Fernando II, 3º Duque de Bragança e cunhado do rei.

D. Fernando terá conspirado contra o rei e procurado apoios em Castela e foi por isso julgado, condenado à morte e executado em Évora a 20 de junho de 1483. A audiência onde se determinou a sentença – conta Ana Paula Amendoeira – decorreu numa sala que D. João II mandou decorar com painéis alusivos à lenda da justiça de Trajano.

Trajano, recordou a historiadora “ia para a guerra quando foi abordado por uma mulher que lhe pediu que fizesse justiça a um criminoso. O imperador romano disse-lhe que o faria quando regressasse, mas a mulher disse-lhe que poderia morrer e não se faria justiça, pelo que o julgamento se fez logo ali. Acontece que o criminoso era o próprio filho de Trajano e, mesmo assim, o imperador condenou-o à morte”.

Com os painéis, D. João II mostrava ao que ia. D. Fernando II não esteve presente na audiência, mas um seu representante insurgiu-se contra o facto de o rei fazer parte dos 21 que compunham o tribunal, uma vez que era parte interessada.

Conhece-se a história. D. Fernando foi executado na Praça do Giraldo, em Évora, os bens da Casa de Bragança reverteram para a Coroa e os filhos do Duque, ainda crianças, foram levados para Espanha, onde cresceram.

Quando D. Manuel subiu ao trono anulou a sentença e devolveu terras e títulos à Casa de Bragança. D. Jaime, já adulto, regressa a Portugal já como Duque de Bragança e torna-se um dos favoritos do rei, de tal forma que este – já casado, mas ainda sem descendência – o nomeia seu herdeiro.

É isto que, afirma Ana Paula Amendoeira, permite aos historiadores avançar a tese de que o fresco terá sido pintado entre 1498 e 1499. Já fora da cercadura que rodeia os dois quadros do fresco, já muito desvanecido, é possível ver-se um brasão de armas. Este brasão foi estudado e chegou-se à conclusão que é da Casa de Bragança, mas com as armas do Reino de Portugal. Ora acontece que apenas em 1498 o rei deu esse privilégio ao ducado, quando fez uma viagem a Sevilha e antes de lhe nascer o primeiro filho.

D. Jaime, o 4º Duque de Bragança, pretendeu com este fresco reabilitar o seu pai, lembrando que a justiça nem sempre é cega, e fê-lo na sala de audiências de Monsaraz, por ter sido o alcaide desta localidade que o levou para Espanha no final do julgamento de Évora


O mistério está muito perto de ser explicado, mas ainda há questões por resolver e que se colocam depois de se ter uma leitura físico-química do fresco por Milene Gil, investigadora do Projeto Hércules da Universidade Évora.

Esta investigadora afirmou que a maioria da representação do Bom e do Mau Juiz foi feita ainda com a argamassa fresca, mas que o mesmo não aconteceu com o brasão. Terá sido pintado posteriormente? " Fonte: Jorge Montez em Portugal de lés a lés ". GOSTAVA SÓ DE ACRESCENTAR QUE O PEDREIRO QUE EM 1958 EXECUTAVA AS REFERIDAS OBRAS ERA O VILA REAL PAI DO NOSSO CONTERRÂNEO E MEMBRO DE ESTE GRUPO O António Bicas e QUE PERANTE TÃO INUSITADO ACHADO O COMUNICOU AO Sr TEÓFILO, TENDO AMBOS ENCAMINHADO O ASSUNTO PARA QUEM DE DIREITO.



quarta-feira, 24 de março de 2021

A LENDA DA MOURA ENCANTADA NA FONTE DA LESMA EM CAPELINS


A lenda da moura encantada na Fonte da Lesma, em Capelins

No ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil duzentos e trinta, no Domingo, dia vinte e quatro do mês de Março, os cavaleiros vilãos da cidade de Évora, reconquistaram a Vila de Odialuciuez (Terena), situada entre as Vilas de Juromenha e de Monsaraz que, sem fortaleza, o pequeno regimento que a defendia, cedeu facilmente às forças da cristandade depois de uma escaramuça que produziu algumas mortes e alguns feridos!
Os cavaleiros vilãos, tomaram as medidas de segurança e acamparam junto à Ribeira de Odialuciuez (Lucefécit), para tratar os feridos, descansar, organizar a logística e formar os grupos que, na madrugada seguinte, tinham de investir para sul, pelo vale da dita Ribeira e do Rio Odiana (Guadiana), para dominar pequenas bolsas de resistência concentradas nos Montes dos lavradores, apoiadas pelas tropas dos mouros instalados na Fortaleza mourisca de Monsaraz!
Durante a noite, os lavradores mouros residente a sul de Odialuciuez foram informados pelos espiões que, os cristãos tinham tomado aquela Vila e, preparavam-se para invadir as suas terras, pelo que, podiam fugir para Juromenha ou Monsaraz, ou podiam ficar e negociar com os cristãos, tornando-se seus servos!
Alguns senhores mouros, durante a noite, abandonaram os seus Montes e fugiram com as famílias para aquelas fortalezas, onde, ainda havia segurança, porém, outros ali nascidos, em terras já de seus avós, ficaram a tentar a sua sorte!
De madrugada, as forças cristãs saíram da Vila de Odialuciuez - Terena - e, cerca de duas horas de caminhada sem paragem, chegaram junto de um grande Monte, era o atual Monte do Escrivão, onde foram emboscados por um grupo de rapazes armados de varapaus, facas, espadas e outras armas artesanais, mas foram encostados às paredes pelos cavaleiros, desarmados sem ferimentos, apenas levaram alguns açoites e grandes puxões de orelhas, obrigando-os a contar-lhes tudo o que queriam saber sobre o rico lavrador mouro dono daquele Monte!
Os cavaleiros vilãos ficaram a saber que, o lavrador não queria deixar o Monte onde tinha nascido, mas com receio que os cristãos fizessem mal à família, principalmente à filha chamada Aniza considerada a rapariga mais linda da região de Odialuciuez, à última hora, tinha decidido partir para a Vila e Fortaleza de Monsaraz!
Os cristãos, ficaram a saber a que horas tinham partido e qual o caminho seguido na direção de Monsaraz e, os rapazes mouros contaram-lhe que, por motivo de maior segurança, a caravana tinha descido o vale da Ribeira, pelas terras do lavrador, pela atual Talaveira e Roncão e, ao fundo viravam pelo caminho que o guerreiro mouro Azavel usava com os seus mil cavalos, quando descia de Badajoz, pelo vale do rio Odiana até Monsaraz!
O lavrador mouro e a respetiva caravana levavam mais de duas horas de avanço, mas como o caminho estava muito mau, devido às grandes chuvadas de Abril, a sua marcha era muito lenta e quando chegaram à famosa Fonte do Amir (principe árabe), pararam a descansar e a abastecer daquela nobre água, não só por ser da melhor que existia na região, mas porque, já não podiam parar até Monsaraz!
Quando estavam preparados para continuar, chegaram alguns espiões e criados do lavrador a informá-lo de que os cristãos estavam mesmo a chegar, já se ouviam os cascos dos seus cavalos e seria melhor render-se e negociar, do que encetar uma fuga que podia acabar em tragédia!
O lavrador mouro começou por negar a rendição e mandou preparar os seus homens para receber os cristãos, mas disseram-lhe que era uma grande força, com homens bem armados e se não se rendessem, morriam todos, incluindo a sua família, mas se negociasse, podia ficar servo dos cristãos, mas só até que o exercito mouro do Califado de Córdova que vinha a caminho, os libertasse, ou em último caso, mais tarde podia ter a oportunidade de fugir para Monsaraz!
O lavrador ficou uns instantes a pensar na proposta e achou que fazia sentido, mas naquele momento lembrou-se da sua linda filha Aniza que, decerto não seria respeitada por aqueles cães cristãos, ainda pensou em a esconder por ali, mas eles acabavam por a encontrar e seria pior, então, fez-se luz no seu pensamento, tinha de a encantar, depois, quando viesse o exército de libertação, seria desencantada e tudo voltava ao normal, não tinha dúvidas de que seria a melhor maneira da filha ficar livre das garras dos cristãos!
Com a aproximação dos cristãos, a pressão dos presentes subia cada vez mais, o lavrador chamou junto de si a mulher e a sua linda filha Aniza e contou-lhes o que estava a pensar, explicou-lhes que, perante a situação, não encontrava outra alternativa, elas olharam uma para a outra e, sem contestar, concordaram com a ideia!
O lavrador, apressadamente explicou à filha o que tinha de fazer quando fosse desencantada, entregava o tesouro que fazia parte do desencantamento, o qual, ficava escondido, debaixo das pedras da Fonte do Amir e, se aquelas terras estivessem sobre o domínio dos cristãos, seguia, rapidamente para a moirama, caso contrário, ele encarregava-se de a mandar desencantar!
A cavalaria cristã ouvia-se cada vez mais próxima, já tinham atravessado o atual Ribeiro do Carrão e, o lavrador começou a dizer as palavras mágicas, quando chegou o momento de escolher o animal ou objeto, no qual a filha devia ficar encantada, não conseguia encontrar nada à mão, mas viu uma lesma tão bonita, tão elegante, com os corninhos de fora a subir as pedras da Fonte do Amir e, como não podia esperar mais, disse à filha que ficava encantada naquela linda lesma e seria desencantada com dois beijos de um jovem pastor, a filha anuiu e desapareceu, quase ao mesmo tempo, surgiram os cristãos na sua frente, o lavrador caiu de joelhos em sinal de submissão e, só se levantou, quando um oficial que comandava o regimento o mandou levantar, afastaram-se da Fonte e o oficial fez-lhe algumas perguntas, às quais, ele respondeu com muita humildade e prometeu ser seu servo, deixando-o convencido que lhe dizia toda a verdade e estava submisso aos cristãos!
Alguns cavaleiros cristãos, procuraram a sua filha, como não a encontravam, tentaram saber do seu paradeiro, ele respondeu que, tinha seguido diretamente por outro caminho, para a Fortaleza de Monsaraz e, decerto, já lá estava! Os cristãos, não ficaram muito convencidos, mas perante a atitude do oficial que, não o questionou sobre isso, não insistiram com mais perguntas e ficaram por ali!
Depois de tudo tratado, naquele lugar, alguns cavaleiros e infantes, voltaram com o lavrador e a caravana para o Monte - do Escrivão - onde foram efetuadas as negociações, quanto à posse das terras, dos gados e do tributo a pagar ao futuro senhorio, ficando o lavrador a explorar as terras mediante um pesado tributo e, depois de bem abastecidos de boa comida, a maioria dos cavaleiros vilãos seguiram para outros Montes, sempre com os olhos na Fortaleza de Monsaraz, onde estava um grande regimento mouro que podia sair ao seu encontro a qualquer momento!
O lavrador mouro, aceitou todas as condições que lhe foram impostas, não só, por não ter outra alternativa, mas na esperança de que seria por pouco tempo, porque, lhe diziam que o exército mouro do Califa de Córdova, devia estar a chegar, mas não chegou e, Juromenha, Monsaraz e toda a região do Odiana, logo a seguir, cerca de 1232, caíram nas mãos dos cristãos, por isso, o lavrador mouro e a sua família, desesperados, fugiram para as terras da moirama, senão, seriam servos dos cristãos, o resto das suas vidas!
A sua linda filha Aniza ficou para trás, encantada em lesma na Fonte do Amir, onde esteve durante muitos séculos, não por falta da presença de jovens pastores, mas devido ao animal em que estava encantada que, não cativava os rapazes a dar-lhe os dois beijos que ela lhes pedia, além de, ser uma lesma falante assustava os rapazes, obrigando-os a fugir da Fonte, muitas vezes sem encher o barril de água!
A lesma, só podia sair do seu esconderijo no tempo tépido, porque, não suportava muito frio, nem muito calor, sendo mais uma desvantagem, reduzindo as oportunidades em fazer as propostas do seu desencantamento aos jovens pastores que ali se dirigiam à Fonte!
Quando esta situação começou a ser falada pela região, ninguém acreditava nos rapazes, porque era impossível haver lesmas falantes e, diziam que era alguma feiticeira, ou invenção dos rapazes e a Fonte começou a ser conhecida pela "Fonte da Lesma"!
Quando os rebanhos da serra da Estrela começaram a descer para as pastagens do Alentejo, na transumância, eram acompanhados por muitos rapazes que ajudavam os pastores, chegavam em Novembro e partiam em Março ou Abril, mas alguns rapazes, ou porque arranjavam cá namoradas, ou porque as suas famílias eram numerosas e muito pobres, passando muito mal, preferiam ficar por cá e, foi o que aconteceu com o Manel Catrino que, ficou de ajuda do pastor da herdade do Aguilhão! Como habitualmente, um dia o pastor mandou-o buscar água à Fonte da lesma, por ser muito boa, servia de mesinha, o Manel Catrino era um rapaz que andava sempre bem disposto, cantando ou assobiando por todo o lado, passou ao Porto do Aguilhão, por cima das passadeiras, desceu a Ribeira de Lucefécit e, assim que chegou à dita Fonte, ouviu uma linda voz que, era a da moura Aniza:
Aniza: Bom dia, jovem pastor, não te assustes, eu não faço mal a ninguém, sou uma moura encantada numa lesma, chamo-me Aniza e tu como te chamas?
Manel Catrino: Olha, olha, já me tinham contado que andavam por aqui lesmas falantes e eu não acreditava, agora já acredito, eu sou o Manel Catrino, da Póvoa Nova, la da serra da Estrela, mas não sou pastor, sou o ajuda do pastor além do Aguilhão, então, agora que já nos conhecemos, diga-me lá, o que que vocemecê me quer?
A moura Aniza sentiu que, tinha chegado o fim do seu encantamento, nunca nenhum rapaz lhe tinha respondido e, muito menos, se tinham prontificado a ouvi-la!
O Manel Catrino sentou-se numa pedra da Fonte e com muita calma, ouviu o historial da vida da moura sem a interromper, só assobiava em sinal de admiração pelo que ouvia, por fim, colocou-lhe algumas dúvidas sobre o desencantamento que ela rapidamente esclareceu e, sem mais perguntas, quando ela lhe disse que podia avançar para a beijaria, nem hesitou, ele que até beijava as ovelhas ronhosas, quanto mais uma lesma, deu-lhe os dois beijos com tanta sofreguidão entre os corninhos, que quase a engolia, naquele momento, ela transformou-se na mulher mais linda que o Manel Catrino alguma vez tinha visto na sua vida, ficou tão atarantado e assustado que caiu de costas, a moura entregou-lhe o tesouro e desapareceu entre os arbustos da Ribeira de Lucefécit!
Quando o Manel Catrino se conseguiu erguer, meteu a mão no tesouro para se certificar o que estava dentro do saco, deu umas chapadas com força nele próprio, para ter a certeza que não era um sonho e lembrou-se de ir procurar a linda moura, correu, correu, pela Ribeira abaixo até chegar ao Rio Odiana, ao pego de Dona Catarina, na esperança de a encontrar nas suas margens, ou a atravessar o rio, mas nunca mais viu sinais da linda moura Aniza!
O Manel Catrino, ficou com as ideias baralhadas, não imaginava o que fazer com aquele tesouro, pensou em o levar para dividir com o pastor, mas em boa hora se arrependeu, porque, decerto, ficava sem ele, então decidiu escondê-lo num lugar bem seguro debaixo de uns rochedos e, mais tarde com calma logo decidia o que fazer, escondeu o tesouro e foi encher os barris de água e seguiu para a herdade do Aguilhão, no outro lado da Ribeira, quando lá chegou com muitas horas de atraso, o pastor estava cheio de sede, deu-lhe uma surra tão grande que o deixou todo derreado e em grande sofrimento durante alguns dias, mas abriu-lhe os olhos, por pouco tinha contado tudo ao pastor, mas ele nem o deixou falar e essa surra, foi uma grande lição para o Manel Catrino!
Quando melhorou, disse ao pastor que ia voltar para a serra da Estrela, porque, estava com muitas saudades dos pais e dos irmãos, o pastor fartou-se de rir na sua cara e disse-lhe que, se queria passar fome, podia ir, mas nunca mais ali punha os pés naquela herdade do Aguilhão, porque se ali voltasse seria corrido a pontapés, mas ele, tinha tanto medo do pastor e foi-se embora dali!
O Manel Catrino, agora era um rapaz muito rico, dono de um tesouro, mas muito pobre, porque, não podia dispor dele, ninguém ia acreditar que o tinha recebido, honestamente devido ao desencantamento de uma moura, então, ficou pelas terras de Terena e de Capelins, o mais próximo possível do esconderijo do seu tesouro e, teve de andar mais de cinco anos em ajuda de gado e em trabalhos agrícolas, sempre, procurando saber a maneira de trocar o tesouro, ou parte dele, por dinheiro, para realizar o seu grande sonho, comprar uma herdade!
Já senhor de si, conseguiu saber que, moravam uns judeus muito ricos, na Vila de Borba que compravam moedas de ouro, pratas, pedras preciosas e jóias, um dia foi procurá-los, mas não levou nada, disse-lhe que tinha umas coisitas, cordões e outras peças que lhe pareciam ser de ouro que tinha achado quando era pastor e como não lhe serviam para nada, queria vendê-las! Os judeus, ficaram de olhos arregalados e nem quiseram saber onde os tinha achado, disseram-lhe que os fosse buscar já, que ficavam com tudo!
O Manel Catrino era muito fino, não teve pressa, quem esperou mais de cinco anos, espera mais um mês, pensou ele, e se o pensou, melhor o fez, só passados mais de um mês, com segurança, foi ao esconderijo onde estava o seu tesouro, escolheu algumas peças, meteu-as nos bolsos de umas ceroulas e montado na sua burra, voltou a Borba! Os judeus assim que o viram, lembraram-se dele e apanharam as peças de ouro com as duas mãos para observar bem, e ficaram sem palavras, avaliaram as peças por pouco mais de metade do seu valor, mas o suficiente para o Manel Catrino não acreditar no valor que ouvia, pelo que, nem regateou, não houve muita negociação, ele aceitou o que lhe ofereceram! Os judeus mandaram chamar o Tabelião da Vila de Borba para assistir ao negócio e ao pagamento, parte em dinheiro e outra parte numa moratória, uma escritura de juro, com o compromisso do pagamento no prazo de um mês!
Depois de tudo tratado o Manel Catrino foi para Vila Viçosa e, dirigiu-se ao Tabelião dessa Vila para o ajudar na compra da herdade, foram ter com um Procurador que tinha algumas herdades para vender, com o qual, negociaram três herdades nas terras de Terena e Alandroal!
Quando os processos da compra/venda das três herdades ficou resolvido, o Manel Catrino foi tomar posse das suas herdades e dos gados que tinham entrado no negócio e a conhecer os criados, feitores e, principalmente os pastores que tinham muita importância, era deles que dependiam os rebanhos e a boa produção, então, na sua última herdade, o feitor mandou chamar o pastor e explicou-lhe que estava ali o novo dono da herdade que queria ter uma conversa com ele, o pastor chegou de chapéu na mão, em sinal de respeito, o feitor anunciou o novo lavrador e o Manel Catrino estava de costas voltadas, a fingir que olhava para a propriedade, o pastor deu-lhe os bons dias e quando ele se virou, o pastor viu quem era e lembrou-se o que lhe tinha dito, que se algum dia, ele voltasse ali à herdade o corria a pontapés dali para fora, caiu de joelhos na sua frente a pedir-lhe perdão! O lavrador Manel Catrino, deu uns passos em frente e com muito respeito colocou-lhe a mão no ombro e disse-lhe para se levantar, estava perdoado e tudo esquecido, continuava a ser o seu pastor, porque, o mal que lhe tinha feito do passado já não tinha remédio e nunca era tarde para ele ser melhor pessoa!
O pastor levantou-se, beijou-lhe a mão e disse-lhe que nunca mais esqueceria aquele gesto, compreendeu as palavras do Manel Catrino e prometeu-lhe que seria isso que ia fazer o resto da sua vida, e fez!
O Manel Catrino casou-se com uma rapariga muito pobre, já sua namorada antes de comprar as herdades, amavam-se muito, à qual, contou toda esta história e depois aos filhos, mas nas terras de Capelins diziam que, a sua fortuna provinha da venda de um bocado da serra da Estrela que estava cheia de ovelhas, de uns tios que não tiveram filhos! O Manel Catrino e sua esposa a Catarina, como era normal nessa época, tiveram muitos filhos que foram lavradores nas terras de Terena e de Capelins e, donos de alguns Moinhos do Rio Guadiana e das Ribeiras de Lucefécit e do Azevel!
O Manel Catrino, continuou a cantar e a assobiar pelas suas herdades até ao dia em que foi prestar contas ao Senhor, sendo, nesse tempo, o homem mais opulento das terras de Capelins e de Terena!
A Fonte da lesma, em Capelins, continuou a oferecer boa água, até ao dia em que foi submersa pelas águas da Albufeira do Grande Lago de Alqueva, que lhe usurpou a sua água e a sua história.
Fim
"Texto de Correia Manuel em Amigos de Capelins"
     A Fonte da Lesma, em Capelins, fica nesta área.

domingo, 21 de março de 2021

MERCEARIAS DA NOSSA TERRA – O TI COELHO

 MERCEARIAS DA NOSSA TERRA – O TI COELHO


Tentaremos um dia destes, falar das mercearias da nossa freguesia e do seu papel socioeconómico à época. Hoje iremos recordar aqui, uma que sem dúvida alguma, na nossa freguesia e nomeadamente no Telheiro, onde estava sediada, marcou uma época. Oriundos da zona centro do país, mais concretamente da zona de Pombal, terá vindo esta família na primeira metade do século XX, segundo consta, terá sido o patriarca, que começou, a aparecer por aqui vendendo ambulante pelas aldeias, vindo posteriormente, por volta dos anos 20 a estabelecer-se no Telheiro. Alguns de nós, ainda nos recordamos do Ti Coelho e muitos mais serão aqueles, a quem ainda é familiar o nome de Carminda, herdeira por natureza da mercearia do Ti Coelho. Atrever-me ia a dizer, que a mercearia do ti Coelho ou da Carminda, como posteriormente ficou conhecida, não era uma mercearia, era assim uma espécie de centro comercial, desde o prego ao parafuso, passando pelas botas de borracha, não esquecendo o arroz e o açúcar, ou a peça de linho para os lençóis, ou à bombazine para um par de calças, ali havia de tudo.
Não resisto a contar aqui, um episódio, que é bem revelador do espírito comerciante do Ti Coelho. Comerciante abastado, e para conseguir bons preços, comprava por vezes em grandes quantidades, foi um dia alertado pelos seus filhos, que devido à enorme quantidade de açúcar, que tinha comprado, este começava já a dar alguns sinais de estar a deteriorar-se. Astúcia de comerciante, era coisa que ao Ti Coelho não lhe faltava, começou logo a pensar, como é que se iria desfazer de tão grande quantidade de açúcar. Um dia apanhou lá na loja, uma cliente, daquelas que ele sabia que era mulher para guardar bem um segredo, chamou-a de parte e disse-lhe, ouve lá FULANA, tu tens muito açúcar? Por acaso até não tenho Ti Coelho! Então olha lá não digas nada a ninguém, mas se poderes, compra mais uns bons quilos, porque vai haver uma grande crise de açúcar, parece que lá para Lisboa, houve problemas com o descarrego dos barcos e vai faltar o açúcar. Passaram-se alguns dias e não tardou, que a Carminda lhe disse-se, olhe pai! Não sei o que é que aconteceu, que desatou tudo a comprar açúcar já se está a acabar, sorria maliciosamente o Ti Coelho e respondia, já sabes como elas são, devem ter começado todas a fazer marmelada e arroz-doce.
Obrigada Antonino por essa memória prodigiosa que nos vai contando estes pequenos episódios da nossa terra.

“Foto Net e textos de Isidro Pinto”

O MAQUILÃO E AS TRAIÇOEIRAS AGUAS DO AZEVEL

O MAQUILÃO E AS TRAIÇOEIRAS ÁGUAS DO AZEVEL


Hoje com as cheias que estamos vivendo, veio-me à memória o TI Manel Serafim, conterrâneo nosso, que nas décadas de 50/60 foi durante largos anos maquilão, dos moinhos de Calvinos e dos Piteiras, há época propriedade do também conterrâneo e muito conhecido o Ti Zé Luís, patriarca da família Gonçalves de onde sairia aquele que foi o último moleiro do moinho de Calvinos o Domingos Pintainho.
Tal era a assiduidade com que o Ti Manel Serafim, fazia a ligação entre as aldeias da freguesia e o moinho de Calvinos, que se orgulhava do seu fiel e possante companheiro de viagens o macho russo, de quem costumava dizer com orgulho, ponho-lhe as arreatas atadas ao taipal e não lhe toco até Calvinos, conhece os buracos todos. O macho Russo era um bonito e possante exemplar de raça muar, vezes sem conta puxou a carroça, carregada de semente ou farinha pela sinuosa estrada de Calvinos, que saía e muito embora já cortada em alguns pontos, sai do Ferragudo pelo que hoje chamamos de Monte Verde, Monte da Breca, Fonte da Breca e Porto de Calvinos. O porto de Calvinos no Azevel era sem dúvida alguma o ponto nevrálgico deste percurso, não só pelas impetuosas águas do Azevel, mas também porque parte do percurso foi aberto a força de picaretas, cuja largura não ia muito além da largura da carroça, o que pressupunha que quando submerso não havia margem para erros.
O inverno ia chuvoso, mas nada que tivesse impedido até aí a laboração do moinho, era mais uma das muitas viagens de ida e volta do Ti Manel Serafim, quando chegou ao Calvinos já o Domingos Pintainho o espera junto ao monte, bom dia Domingos dizia o Ti Serafim — bom dia Manel respondia o Domingos acrescentando, olha encosta o carro aqui à porta do monte, e descarrega aqui a semente, que o gajo está a subir que nem um bruto, (referindo-se ao Guadiana) e temos que deixar de moer e já agora ajudas-me a ir lá abaixo ao moinho com o carro para trazermos tudo aqui para o monte.
A chuva que de manhã começou miúda e mansinha foi ao longo do dia ganhando corpo e intensidade, caindo agora copiosamente deixando adivinhar as habituais e repentinas cheias do Azevel. Dizia o Domingos, Serafim olha que eu não te empato mais, não te descuides que com o que está caindo não tarda muito já não passas o Azevel, é verdade, Domingos, hoje tem caído bem o dia inteiro, vou-me já andando, mas tenho confiança no Russo ele sabe quando se pode passar, respondia o Serafim, Vê lá, Vê lá, olha que falhas todos temos e ele algum dia também se pode enganar, e olha que a água não tem agarras, se vires que não passas, volta pra trás e dormes aí no monte, terminava assim o dialogo com o Domingos Pintainho.
O Russo nome pelo qual tratava o seu macho, tinha vezes sem conta passado o Azevel, e como todos os animais, também ele tinha perceção do perigo, até aquele dia e durante anos, apenas uma ou duas vezes se recusou a passar, naquele dia e como de costume, deixou o Manel Serafim que o Russo tomasse parte na decisão, afinal apesar do racional e irracional eram uma equipa com provas dadas, quando dobrou a penúltima curva do sinuoso caminho do Azevel, depressa se deu conta do sussurro assustador das águas, o Pintainho não se tinha enganado o Azevel levava uma grande cheia, continuou a descer até à entrada do porto, e já muito perto das águas, que corriam desenfreadas arrastando consigo tudo o que encontravam à sua frente, sem que nada lhe dissesse o Russo parou, farejando as águas como tantas vezes fizera, deu dois ou três fortes sopros deixando escapar o seu temor e indecisão, o Manel Serafim folgou as arreatas tentando não ter interferência na decisão, enquanto assustado via passar perto deles enormes troncos arrastados pela impetuosa corrente, deixou as arreatas soltas e num gesto vigoroso ajoelhou-se dentro do carro abrindo os braços e com unhas e dentes agarrou-se aos taipais de ambos os lados, parecendo-lhe que seria a posição de melhor equilíbrio, o Russo tinha decidido avançar, andaram alguns metros, e o ruído dos detritos arrastados pela corrente, a bater nos taipais do carro era assustador, não tardou muito em dar-se conta, que o carro já não levava as rodas no chão, devido ao facto de ir descarregado, depressa começou a flutuar e a ser arrastado pela corrente, e consequentemente, arrastando atrás de si o Russo que se debatia ingloriamente para os tirar de ali, veio-lhe a memória as palavras do Domingos Pintainho, todos falhamos, e o macho também pode falhar, efetivamente o Russo terá falhado, esqueceu-se de que nunca antes tinha acontecido ir descarregado, o que fazia com que o carro perdesse aderência e começasse a flutuar, a corrente arrastava-os a caminho de uma morte certa, felizmente o carro não se virara, o Manel Serafim tentava manter o equilíbrio agarrado aos taipais, enquanto o Russo se debatia, um enorme estrondo, seguido de um solavanco e um forte embate fê-los ficar encalhados num enorme Freixeiro, no meio do desespero de quem caminha para a morte, ambos perceberam que essa poderia ser a única hipótese entre mil, de pelo menos momentaneamente não morrerem afogados, o Manel Serafim conseguiu alcançar o Freixeiro e subir por ele enquanto pode, enquanto o Russo percebeu que deveria ficar o mais imóvel possível para não desencalhar o carro.
As horas pareciam intermináveis, enquanto a roupa encharcada aumentava a sensação de frio no cimo do Freixeiro, o desânimo quase o dominava, veio-lhe à memória a mulher e os filhos e toda uma vida de trabalho árduo neste Alentejo, que às vezes parece impiedoso com aqueles que pouco têm. AGUENTA RUSSO alguém há de vir à nossa procura.

Já o serão ia largo e a mesa posta para a ceia deixava antever que algo não estava bem, não era habito o Manel Serafim chegar tão tarde, quando muito ao sol-posto, a angústia foi aumentando com o passar das horas, respirava fundo tentando recuperar o ar que lhe faltava oprimido por aquele aperto no peito, olhem lá filhos! Vamos pedir ajuda aos vizinhos, mas nós temos que ir à procura do pai, a esta hora se não ficou no moinho onde quer que esteja já não está por bem, dizia a Ti Estrudes.
Entre familiares e vizinhos mais chegados reuniram uma pequena equipa que depressa tomou a estrada de Calvinos, o Azevel era algo em que ninguém queria pensar, mas que, no fundo a todos atormentava, pode ser que tenha tombado o carro ali no Má Passo, ou que esteja atascado à Figueira do Breque e não seja capaz de sair, também não podemos esquecer que pode não ter querido meter-se à água no Azevel e ter ficado lá no Monte de Calvinos, e amanha por aí aparece, concluía um dos vizinhos, todos se recusavam a desenhar uma tragédia.
As águas não davam sinais de baixar, o frio próprio das chuvosas noites de inverno, cobrava a sua parte, as mãos enrregeladas, tinham cada vez mais dificuldade em manter-se firmemente agarradas ao Freixeiro, olhava para baixo e imaginava que também o Russo atolado em água até ao pescoço, e enfrentando a força da corrente seguramente estaria a passar por grandes dificuldades, AGUENTA-TE RUSSO que alguém há de vir á nossa procura, voltou a olhar novamente para aquilo que lhe parecia ser a direção da estrada, e por uns momentos pareceu-lhe ver luzes, luzes difusas, fracas de intensidade, mas fortes de esperanças, pensou, são eles que vêm aí, seguramente a minha Estrudes os meus filhos e algum amigo ou vizinho? Sabia que àquela distância ainda não eram audíveis os seus gritos, mas, começou imediatamente a gritar ESTOU AQUI, ESTOU AQUI.
Aquilo em que nenhum queria pensar estava cada vez mais perto, estavam já na descida para o Azevel e do Manuel Serafim nem rastos, à distância a que estavam ouviam o enorme barulho das revoltosas águas, foram-se aproximando, mas a escuridão da noite pouco ou nada deixava ver, apenas o brilho das águas e pouco mais.
Agora já não tinha dúvidas, as luzes seriam três ou quatro o que correspondia a três ou quatro lampiões, são eles, que já estão aqui à minha procura! Foi buscar forças onde já não as tinha, mas gritou, gritou com tanta intensidade que do outro lado do rio alguém disse, calem se lá! Parece que soa alguém a gritar lá do meio do rio, com a voz embargada de emoção exclamou a Ti Estrudes é a voz do meu Manel! Senhor dos Passos nos ajude, mas está vivo, ó filhos vão já ao Ferragudo levar a notícia e pedir às pessoas para virem ajudar a salva-lo, que eu e os vizinhos passamos aqui a noite.
Apesar de todo encharcado e das várias horas que levava em tão perigosa situação, renasceu nele a esperança de sair dali com vida, a fogueira que os familiares acenderam para passar a noite, apesar da distância e a impossibilidade física de isso acontecer, também lhe aquecia a alma, nunca antes um lume o aqueceu tanto, nem nas gélidas manhãs de geadas em que as mãos se engadanhavam, era um calor intenso, aquela chama era uma chama de alento e esperança de conseguir sair de tão perigosa situação falava, falava para ele e para o Russo, vamos aguentar Russo, ainda não estamos mortos, talvez não seja desta vez que o Azevel nos engole.
No Ferragudo vários eram aqueles, que esperavam ansiosamente que alguém voltasse e pudesse trazer um pouco de luz, sobre o que teria acontecido ao Manel Serafim, olhos postos na estrada de Calvinos alguém exclamou, parece que vem lá ao Monte do Ti Rela uma luz, será que já trazem alguma notícia? Mas não vêm todos, eram três ou quatro lampiões e só lá vem um, exclamava outro dos presentes, a incontornável ansiedade fez com que fossem descendo a rua ao encontro de quem lá vinha, era um filho do Manel Serafim, já achamos o meu pai, está lá no meio do Azevel em cima dum Freixeiro, mas está vivo, vamos avisar as pessoas e de manhã vamos todos ver se o conseguimos salvar, dizia o filho do Manel Serafim.
Indiferente ao silencio da noite a notícia foi-se espalhando como fogo em seara seca, de madrugada eram já muitos aqueles, que tentavam organizar-se, recolhendo tudo o que lhes parecia ser útil para semelhante operação de salvamento, cordas, pás, enxadas e escadas. Mal se começou a ver, começaram a chegar ao Ferragudo os grupos do Telheiro e de Monsaraz, de burro, a pé ou de carroça, ninguém queria ficar indiferente, de Monsaraz além de muita outra gente vinha também o Manuel Pedinho, intrépido contrabandista, de quem se dizia ser excelente nadador, tinham sido várias as vezes que se metera à água para escapar aos Carabineiros ou aos Guardas Fiscais, e de quem se contava também que quando os meloais eram no Mercador, (herdade do lado Mourão) pela calada da noite ia roubar melancias e voltava a cruzar o Guadiana com elas.
Era impossível ficar indiferente a tamanho gentio, deixou momentaneamente emocionar-se e as lágrimas corriam-lhe teimosamente, indo diluir-se nos fios de água que lhe escorriam da cabeça, estava tremulo de frio e empapado em água, mas, agora mais que nunca não podia vacilar, era hora de esperança, esperança de sair dali vivo e poder voltar para junto dos seus e agradecer a toda aquela gente.
Ó! Ti Estrudes não chore que eu vou tirar dali o Manel, dizia o Manel Pedinho, DEUS TE OUÇA FILHO e que o SENHOR DOS PASSOS TE AJUDE respondia a Ti Estrudes. Despiu as calças e a camisa, deixando a descoberto o improvisado fato de banho, que não era mais que umas ceroulas compridas atadas em baixo. Aí nesse carro que veio do Telheiro vêm boas cordas, vão lá desenrolando duas e deem-me as pontas, dizia o Manel Pedinho, tinha a partir de ali assumido o comando das operações, quando eu chegar ao Freixeiro vou atar lá uma corda, essa corda, vocês atam-na ai ao carro de parelha e deixam-na mais ou menos esticada, a outra corda, vou atá-la por debaixo dos braços do Manel Serafim e vocês só a vão mantendo esticada sem fazer força, é só se a água o quiser levar que vocês aguentam e puxam, concluía o Pedinho perguntando, ENTENDIDO ? Nadador experimentado, com as duas pontas da corda na mão, caminhou dez ou doze metros para montante, para que a própria corrente o arrastasse até ao Freixeiro, o que viria a acontecer, tal como combinado, prendeu firmemente uma das cordas ao Freixeiro e esperou que os de terra prendessem a outra ponta ao carro, experimentou a tenção da corda e exclamou para si, está boa! Vá Manel deixa-te lá de choraminguices e sem medo desce lá até aqui, que chegou a hora de ires abraçar os teus filhos, tremolo e meio desorientado pelas longas horas de espera passadas em tão adversas condições, obedeceu de imediato e desceu até onde estava o Pedinho, assustava-o estar com a agua até ao pescoço, mas conhecia o Pedinho e sabia do que ele era capaz, tinha confiança nele, vamos lá atar esta corda aí ao teu corpo por debaixo dos braços, dizia o Pedinho, e agora vens atrás de mim agarrado com unhas e dentes à outra corda e vais mudando os braços agarrado à corda, não tenhas medo, se alguma coisa acontecer eles não te deixam afogar e puxam a corda que tens atada ao teu corpo, concluía o Pedinho.
Aquilo que lhe faltava em forças, sobrava-lhe em vontade de sair de ali, tudo correu como previsto e não tardou estavam em terra firme, era um momento de autêntico júbilo, uns choravam, outros batiam palmas e muitos eram os que davam vivas ao Manuel Pedinho.
Passaram-se alguns minutos e refeitos de tão grande emoção sobressai novamente a voz do Pedinho, e AGORA VAMOS SALVAR O RUSSO, enquanto perguntava, quem é que tem aí uma navalha que corte bem e que seja pequena porque tenho que a levar na boca, logo alguém se prontificou a dar-lhe a navalha ideal, com a corda ainda atada ao Freixeiro tudo era agora mais fácil e não tardou estava junto ao carro e ao Russo, cujo olhar dócil parecia perceber que tinha chegado a hora de o salvarem, deixou que o Pedinho desatasse a corda do Freixeiro e a atasse ao seu pescoço, enquanto este, recomendava para terra aguentem-se com a corda, não deixem o macho ir água abaixo, cortou todas as cordas e correias que ligavam o Russo ao carro ajudando-o a libertar-se deste. Conta quem viu que foi comovente ver o macho conduzido pelas arreatas atrás do Pedinho, ambos nadando para a margem e para a vida.
Pelos relatos que recolhi, não havia consenso relativamente ao carro, se o tiraram nesse dia ou passado dias.
Muitas foram as vidas que se perderam no Guadiana e seus afluentes, felizmente desta vez tudo acabou em bem e o Russo depois de um largo período a recuperar das multiplas feridas que sofreu continuou a levar o trigo e a trazer farinha acompanhado pelo Manel Serafim.
Obrigada a Maria Catarina Cardoso, Francisca Gonçalves, Catarina Berjano e

"Fotos e texto Isidro Pinto"