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sábado, 31 de outubro de 2020

O RAMPELHÃO E OS BARRENOS DA PORTA DO BURACO


 

O Rampelhão e os Barrenos da Porta do Buraco.




Estaríamos talvez na década de 50/60 e a falta de maquinaria apropriada e á época pouco desenvolvida obrigava a que as enormes camadas de xisto que se interpunham no caminho tivessem que ser removidas com a ajuda de explosivos. Trabalho árduo e perigoso para alguns, motivo de brincadeira e adrenalina para outros. Quanto mais a estrada se aproximava de Monsaraz mais compacta a rocha se tornava, e mais frequentes eram os barrenos (nome dado às explosões dentro da rocha). Os miúdos de Monsaraz não tinham agora que se deslocar muito para assistir de perto a toda aquela azáfama que tanto os divertia. João não vais lá pró pé dos homens do fogo, recomendava a sua mãe, ó mãe quando o Ti Arrenca grita, FOGO, FUJAM, eu sou dos primeiros a fugir para baixo do arco da Porta do Buraco, e sou dos que corro mais as pedras não me apanham, está bem está bem concluía a mãe. O Rampelhão rapazolas Montesarense todo espevitado, não queria perder pitada dos Barrenos tendo já consciência como se preparavam e dos efeitos demolidores daquela coisa, a sua presença junto dos homens do fogo tornou-se de tal maneira assídua que estes já não sabiam que fazer para se livrar da rapaziada e principalmente do Rampelhão, até que um dia, como era frequente naquela época alguém se lembrou, este um dia temos que o entalar (enganar) e mandamo-lo ir buscar a pedra de afiar os picaretos que ele anda aí um dia inteiro carregado com um barcoeiro, (pedra grande) esperem lá rapazes dizia o Ti Arrenca, tenho ideia melhor, deixem comigo. Um belo dia logo que a rapaziada se aproximou, diz o Ti Arrenca, olhem lá rapazes! qual de vocês é que quer fazer um favor á gente? eu, eu, responderam quase em coro todos os miúdos de onde sobressaía a voz traquinas do Rampelhão, vai o Rampelhão que ele é o mais forte, concluía o Arrenca, o bom do rapaz enchia o peito de ar e dizia para os outros sou o mais forte, então vais lá aos correios lá no largo da Igreja, na casa do Herculano Pinto buscar uma encomenda, mas olha que aquilo é dinamite para os Barrenos e tu tens que ter muito cuidado dizia o Arrenca, eu sei que aquilo é muito perigoso, o outro dia estava eu amagado (agaixado, escondido) debaixo da Porta do Buraco e quando vossemecê gritou Fogo saltou de lá uma pedra prá aí quase do seu tamanho que subiu mais alto que o Varandil, dizia o Rampelhão. Terminado o diálogo apressou-se o Rampelhão a cumprir tão importante missão, Monsaraz à época fervilhava de gente, todas as casas estavam habitadas e de uma maneira geral as famílias eram numerosas o que pressuponha sempre pessoas na rua, passava o Rampelhão a caminho dos Correios e os bons dias eram constantes, não necessitavam que lhe perguntassem onde ia, vaidoso com tão nobre tarefa que lhe haviam confiado, era ele que dizia, vou aos Correios a casa do Herculano Pinto buscar uma encomenda de fogo pró Ti Arrenca, vê lá rapaz olha que isso é muito perigoso, argumentavam alguns, já estou habituado, todos os dias vejo os homens deitarem os Barrenos lá na trincheira da Porta do Buraco dizia o Rampelhão. Sempre bem falante dizia o Rampelhão, bom dia Ti Herculano, olhe venho buscar a encomenda para o Ti Arrenca, olha lá rapaz olha que isto é muito pesado e perigoso não a podes deixar cair senão isto arrebenta tudo, advertia o Herculano, já estava previamente embalado um enorme pedregulho que o Ti Herculano ajudou a meter às costas do rapaz, aguentas-te Perguntava o Herculano? aguento, mas isto é muito pesado, respondia o miúdo, tens razão isso é muita pólvora que aí vai, isso que aí está, dá para rebentar com Monsaraz inteiro, continuava a advertir o Herculano, por isso vê lá se te aguentas. Os primeiros metros foram feitos com alguma facilidade, mas não tardou que os efeitos do excessivo peso se começassem a notar, o cansaço já era evidente, o suor corria-lhe pela face enquanto que as pernas lhe tremiam que nem varas verdes, queria aguentar mas não era capaz, tomou uma decisão, aproveitaria o poial á porta da taberna e tentaria descansar aí um pouco, o dia estava chuvoso e muitos homens não tinham ido trabalhar o que fazia com que a taberna estivesse cheia dentro e fora de portas, e porque também aquela hora já se tinha espalhado a noticia que o Rampelhão havia caído no engano, alheio a tudo isto e tentando ignorar toda esta gente caminhava com imenso esforço o Rampelhão, o poial parecia-lhe cada vez mais longe, finalmente chegou e encostou-se à parede para que com a ajuda desta a carga fosse deslizando suavemente até à altura do poial, aos poucos ia inclinando o franzino corpo e deixando que o próprio peso da carga o fosse empurrando para a frente e deslizando pouco a pouco os pés, esqueceu-se porém que nesse tempo havia imensas galinhas na rua e que para azar o seu uma havia deixado uma enorme larada sobre as pedras no sítio onde agora estavam os seus pés, o escorregão foi de tal ordem que se deu por feliz não ter ficado debaixo da pedra que caiu com um enorme estrondo sobre o poial, de repente lhe veio á cabeça as palavras do Herculano Pinto HÁ AÍ PÓLVORA PARA DERRUBAR MONSARAZ INTEIRO, sem qualquer hesitação desatou rua abaixo numa corrida desenfreada gritando, FUJAM FUJAM, QUE ISTO ARREBENTA TUDO.

Esta é a nossa forma de homenagear e preservar as memórias das nossas gentes. Obrigada a todos os Rampelhões, Serranos, Zé Ferreiras e muitos outos que escreveram as ultimas páginas da História de Monsaraz enquanto Vila VIVA.

Obrigado amigo António Rodrigues (Marreneco) por me ter contado esta estória.

Um grande obrigado á Maria João Ramalho por me ter autorizado a relembrar aqui o seu pai. 

Testo e foros de Isidro Pinto

 

 



quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A LENDA DO GASPAR OLIVEIRA, CURTIDOR DE PELES, DE MONSARAZ


História, lendas e tradições da Vila de Monsaraz

A lenda do Gaspar Oliveira, curtidor de peles, de Monsaraz








Gaspar Oliveira, era um rapaz natural e residente na Vila de Monsaraz, onde nasceu no ano de 1621, filho do ferrador Belchior Vaz e de Catarina Oliveira, com a profissão de curtidor de peles que, aprendeu muito cedo, uma atividade rentável, porque as peles e couros eram exportados legalmente e em contrabando para o vizinho Reino de Castela!
O Gaspar Oliveira foi sempre rebelde, respeitava todos/as os/as montesarenses, porém, quando bebia uns copos de vinho dava-lhe para se meter com os padres de Monsaraz, não gostava de padres e, sempre que algum passava pela rua da taberna onde se encontrava, se o mesmo fosse de batina, mandava-lhe piropos e assobios de insulto, sendo motivo de galhofa dos companheiros da taberna!
Alguns padres não lhe ligavam, por saberem que eram efeitos do vinho, ou não, mas outros, não gostavam e faziam queixas ao Prior, o qual, um dia foi ter com ele ao trabalho e tiveram uma longa conversa e, o Prior disse-lhe que se a sua atitude chegasse aos ouvidos da Santa Inquisição ele podia acabar mal!
O Gaspar Oliveira, pediu desculpa ao Prior e prometeu-lhe que nunca mais voltava a meter-se com os padres, mas a promessa durou apenas cerca de seis meses e voltou a fazer as mesmas gracinhas!
Como o Gaspar Oliveira não tinha emenda, alguém, talvez um dos padres, fez uma denúncia anónima à Santa Inquisição, onde escreveu que ele era "marrano", ou seja, falso cristão, que atentava contra a Fé Católica e praticava o judaísmo!
Os Inquisidores Apostólicos do Tribunal do Santo Ofício mandou dois Comissários para a Vila de Monsaraz para seguirem os passos do Gaspar Oliveira e de outros suspeitos e não foi necessário investigar muito, para se confirmar o que escrevia o denunciante! Assim, no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil seiscentos e quarenta e quatro, no dia oito do mês de Agosto, ao nascer do sol, estava o Gaspar Oliveira a acabar de comer umas migas gatas, para ir para o seu trabalho, chegaram dois Comissários do Santo Ofício e leram a escrita no mandado, meteram-no numa carroça gradeada que tinha chegado durante a noite, pediram vinte mil réis ao ferrador Belchior Vaz, seu pai, para a sua alimentação, mais quinhentos cruzados para despesas com a sua prisão e, depois de tudo tratado, partiram com ele para o Tribunal do Santo Ofício em Évora!
A viagem foi longa, muitas horas de caminho, entre Monsaraz e Évora, com muito sofrimento, o sol ardente do dia 8 de Agosto entrava pelas grades, passou muita sede e fome, por fim, à tardinha chegaram à cidade de Évora! O Gaspar Oliveira foi empurrado para dentro de uma casa escura, onde, devido ao cansaço adormeceu, sendo acordado passadas algumas horas pelos Comissários e pelo inquisidor que se fazia acompanhar do seu processo de acusação!
O Gaspar Oliveira acordou assustado, não sabia onde estava, mas a ver aqueles homens, pressentiu que estava metido num grande problema, mas quando lhe perguntaram se sabia porque estava ali e do que era acusado, respondeu que não fazia a mínima ideia, nunca tinha feito mal a ninguém, trabalhava desde criança e nunca tinha roubado nada!
O inquisidor disse-lhe que, era acusado de atentar contra a Fé Católica, por isso, o melhor era ele colaborar, porque já sabiam tudo e, se dissesse a verdade, isso podia abonar a seu favor!
O Gaspar Oliveira respondeu que não tinha nada a esconder, toda a gente o conhecia em Monsaraz e sabiam que ele nunca foi contra a Fé Católica, tinha de haver algum engano, deviam estar enganados com a pessoa que queriam prender! O inquisidor acenou para o processo e respondeu: Está tudo aí, não há nenhum engano!
A seguir, o inquisidor conferiu a identificação do Gaspar Oliveira e deu início ao interrogatório:
Inquisidor: Então o senhor Gaspar Oliveira professa a Fé Católica? Ou professa outra? Por exemplo a judaica!
Gaspar: Claro que professo a Fé Católica, senhor, não conheço outra, muito menos essa que fala! Olha que pergunta! Ora essa!
Inquisidor: Vamos lá ter calma, aviso-o de que, para seu bem, limite-se a responder ao que lhe pergunto e não faça comentários! Diga-me lá, a que Santas Missas assiste lá em Monsaraz, em que dias e em que Igrejas?
O Gaspar ficou sem resposta, estava apanhado pelo inquisidor, mas ripostou!
Gaspar: Bem! Bem! Eu agora não tenho assistifo a missas, um dia fui, mas a Igreja de Santa Maria da Lagoa estava cheia até à porta, fiquei mesmo aborrecido, tive de me ir embora e além disso o trabalho tem sido muito, mas posso dizer-lhe que agora começo a ir todos os Domingos!
Inquisidor: O antes, já passou, eu perguntei se neste momento ia às missas! A sua resposta, foi que não, porque parece que tem muito trabalho, porém, temos testemunhas que tem muito tempo para ir para as tabernas de Monsaraz a beber e a ofender a Fé Católica, fazendo chacota dos Párocos de Monsaraz! Mas vamos em frente, uma vez que não vai à Igreja, diga-me lá se reza, se faz as orações a Cristo Nosso Senhor, em sua em casa?
Gaspar: Faço, faço, por acaso até faço, sempre antes das refeições e antes de me deitar!
Inquisidor: Nesse caso, valha-nos isso, então vamos lá, diga as orações que reza e incluindo o Pai Nosso e Avé Maria!
Gaspar: Agora estou tão desvairado da minha cabeça que não me lembro de uma única palavra!
Inquisidor: Vá lá, temos muito tempo, um Cristão lembra-se sempre, pode começar pode onde quiser!
Gaspar: Como já lhe disse, senhor doutor, não me lembro de uma única palavra! Estou tão nervoso que se varreu tudo da minha cabeça!
Inquisidor: Ah varreu-se tudo da sua cabeça? Sabe que está aqui no processo que o senhor Gaspar Oliveira nunca entrou numa Igreja em Monsaraz e que professa o judaísmo?
O Gaspar Oliveira, estava desesperado, já tinha percebido que tinha caído nas malhas da Santa Inquisição!
Gaspar: Alto lá, nada disso é verdade, quando era pequeno entrei muitas vezes com a minha mãe nas Igrejas de Monsaraz e sobre o jadaísmo, não sei nada disso, nem sei como se reza!
O inquisidor continuou a fazer-lhe perguntas, mas ele já estava tão baralhado que nem pensava no que respondia! O inquisidor assim que o viu baralhado, aproveitou e passou para outros terrenos e começou a fazer-lhe perguntas sobre os rituais judaicos e o Gaspar Oliveira, inocentemente confirmava que fazia aqueles rituais, diariamente!
Quando acabou o interrogatório o Gaspar Oliveira estava desgraçado, sem dar por isso, tinha confirmado o que constava na denuncia, assim como, no processo organizado pelos Comissários que o tinham seguiido em Monsaraz, sendo atirado para o cárcere do Tribunal da Santa Inquisição em Évora
Ainda nesse dia, a notícia da sua prisão, espalhou-se por Monsaraz, chegando aos ouvidos da sua noiva, a Maria da Piedade, cujo casamento de ambos estava marcado para Domingo dia 25 de Setembro seguinte!
As Gentes de Monsaraz ficaram chocada com a notícia, porque sabiam que o Gaspar Oliveira, não ia ter bom fim, já havia história na família, o mais certo era ir parar à fogueira ou pelo menos, dez ou vinte anos a remar nas Galés, de onde não voltaria!
No processo do Gaspar Oliveira constava que, ele tinha declarado ser praticante do judaísmo, pelo que, seguiu para julgamento no Tribunal do Santo Ofício, ficando encarcerado, onde asssitia, periódicamente à saída de pessoas acusadas como ele, para serem queimadas vivas na fogueira, na Praça do Geraldo, pensou que, seria esse o seu fim e chorava a pensar no amor da sua vida a Maria da Piedade!
Passou o dia do casamento e nem sinais do julgamento, em Monsaraz toda a gente dizia que, o Gaspar Oliveira não ia escapar de morrer queimado na fogueira e, a Maria da Piedade já se considerava viúva, vestindo vestes negras da cabeça aos pés!
Passaram mais de dois anos e o ferrador Belchior Vaz, como ferrava cavalos de fidalgos e de escudeiros da Casa de Bragança, pedia ajuda a todos para salvar o filho da fogueira, dizendo que ele era inocente daquela acusação, mas todos respondiam que não se podiam meter nos assuntos da Santa Inquisição, no entanto, prometiam que iam ver o que podiam fazer, porque, alguns eram familiares de padres Comissários!
Como alguns fidalgos e escudeiros intercederam, junto de Comissários, talvez por isso, o auto de fé do Gaspar Oliveira foi marcado para o dia 11 de Novembro de 1646!
O Gaspar Oliveira entrou para o cárcere do Tribunal do Santo Ofício com 25 anos, tinha agora 27 anos de idade, mas parecia um velhinho! No Tribunal do Santo Ofício fizeram-lhe as mesmas perguntas a que tinha respondido dois anos antes, mas negou tudo, embora admitindo que, no interrogatório tinha respondido assim, porque não tinha percebido as perguntas e afirmou que nunca tinha praticado judaísmo e nunca tinha atentado contra a Fé Católica! Porém, de nada serviram as suas palavras, porque, para o Tribunal do Santo Ofício o que era válido, era o que estava confirmado no processo de setenta e quatro páginas, sendo-lhe aplicada a seguinte pena:
Sentença: auto-de-fé de 18-11-1646. Abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, sem remissão, instrução na fé, penas e penitências espirituais!
Perante esta sentença, o Gaspar Oliveira ficou destroçado, no entanto, valeu-lhe não ser condenado a morrer queimado na fogueira na Praça do Geraldo em Évora e nem ir remar para as Galés!
O Gaspar Oliveira recolheu ao cárcere sem data de libertação, deixando a Maria da Piedade na situação de viúva, provavelmente nunca podiam casar e, como era muito bonita não demoraram em aperecer pretendentes que, ela sempre declinou, mantendo a esperança de ele voltar a Monsaraz!
O ferrador Belchior Vaz, não desistiu de ajudar o filho e continuava a pedir ajuda aos seus clientes, mas as respostas não eram animadoras, já passados dois anos, foi ferrar o cavalo de um escudeiro da Casa de Bragança e pediu-lhe ajuda! O escudeiro disse-lhe que não podia fazer nada, por ser um assunto muito melindroso, uma vez que era do foro da Santa Inquisição, mas como teve muita pena dele, explicou-lhe os passos a dar, sem garantia de sucesso e disse-lhe que podia usar o seu nome!
O escudeiro explicou-lhe que devia ir a um tabelião e mandar escrever um requerimento ao Tribunal do Santo Ofício, mas devia entregá-lo a um Comissário da Santa Inquisição seu amigo, natural da Aldeia de Reguengos, falava primeiro com os seus pais que tinham origem da Vila de Monsaraz, ditava ao tabelião o pedido de clemência por o Gaspar Oliveira não praticar judaísmo e ser um homem bom, depois, ia à Aldeia de Reguengos falar com os pais do Comissário e combinavam quando podia ser recebido pelo mesmo para lhe entregar o requeirmento!
O mestre Belchior seguiu à risca o que o escudeiro lhe indicou e depois foi à Aldeia de Reguengos falar com os pais do dito Comissário, os quais, tiveram pena dele e prometeram que o ajudavam e que podia voltar daí a dois dias que, o filho ia recebê-lo!
O mestre Belchior assim fez e, conforme combinado, passados dois dias foi recebido pelo Comissário e, à sua maneira, contou-lhe o que se tinha passado com o filho e ele prometeu-lhe que o ajudava, mas não garantia a sua libertação imediata!
O mestre Belchior agradeceu-lhe, despediu-se dele e dos pais e partiu para Monsaraz com pouca esperança de conseguir a libertação do filho, mas os pais do Comissário pediram-lhe para fazer tudo o que pudesse pelo Gaspar Oliveira!
Quando o Comissário chegou a Évora, fez um relatório para juntar ao requerirmento e entregou tudo ao Tribunal do Santo Ofício!
Passados oito dias, o Comissário foi chamado à presença do Inquisidor que, lhe fez algumas perguntas e o confrontou com algumas afirmações que constavam no processo do Gaspar Oliveira e, ele respondeu que não podia negar o que estava escrito no processo, mas sabia através de fonte segura que algumas atitudes do Gaspar Oliveira, eram apenas de rebeldia, acreditava que ele conhecia alguns rituais do judaísmo, qualquer pessoa conhecia, mas não era praticante, nem afrontava a Fé Católica!
O Inquisidor não fez mais perguntas, perante o parecer do Comissário, escreveu que, podiam libertar o Gaspar Oliveira e retirar-lhe a acusação, apenas devia cumprir algumas penitências espirituais e nada mais!
Assim, no dia 18 de Dezenbro de 1848, depois de quatro anos, quatro meses e dez dias no cárcere da Inquisição, o Gaspar Oliveira, de Monsaraz, foi libertado e, na manhã do dia seguinte, já estava na vila de Monsaraz!
A Maria da Piedade que, teve sempre esperança na sua libertação, esperou por ele, porque, era o Gaspar Oliveira que ela amava, assim, passados três meses, no Domingo, dia vinte e oito de Março de 1649 realizaram o seu casamento na Igreja de Nossa Senhora da Lagoa em Monsaraz!
O mestre Belchior, em reconhecimento, foi à Aldeia de Reguengos agradecer aos pais do Comissário, ajoelhando-se a chorar aos seus pés, deixando-os muito comovidos e convencidos que tinham feito justiça!
O Gaspar Oliveira voltou a exercer a sua profissão de curtidor de peles, com muita dedicação, conseguindo uma vida económica muito desafogada e, para mostrar que era um bom Cristão, mandou construir um Albergue ao lado da sua casa para dar abrigo e comida aos peregrinos e pobres passantes, à sua conta!
Até ao fim da sua vida, nunca deixou de cumprir as penitências espirituais e de frequentar as missas, em companhia da sua esposa Maria da Piedade e do rancho de filhos, se praticava judaísmo, era bem disfarçado, porque nunca mais foi molestado pela Santa inquisição.
PROCESSO DE GASPAR OLIVEIRA
NÍVEL DE DESCRIÇÃO
Documento composto Documento composto
CÓDIGO DE REFERÊNCIA
PT/TT/TSO-IE/021/00013
TIPO DE TÍTULO
Atribuído
DATAS DE PRODUÇÃO
1644-08-02 A data é certa a 1648-12-18 A data é certa
DIMENSÃO E SUPORTE
74 f.; papel
ÂMBITO E CONTEÚDO
Estatuto social: parte de cristão-novo
Idade: 25 anos
Crime/Acusação: judaísmo
Cargos, funções, actividades: curtidor
Naturalidade: Monsaraz
Morada: Monsaraz
Pai: Belchior Vaz, ferrador
Mãe: Catarina de Oliveira, cristã-velha
Estado civil: solteiro
Data da prisão: 08/08/1644
Sentença: auto-de-fé de 18/11/1646. Abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, sem remissão, instrução na fé, penas e penitências espirituais.
Por despacho de 18/12/1648, foi-lhe levantado o cárcere e tirado o hábito penitencial, comutados em penitências espirituais.
COTA ATUAL
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, proc. 13
IDIOMA E ESCRITA
Português
NOTAS
Nota ao elemento de informação "Âmbito e conteúdo": Os elementos informativos da genealogia encontram-se referidos no f. 23.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Fim
2 de 74 folhas do processo de Gaspar Oliveira



segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A LENDA DAS FILHAS DO MESTRE AMBRÓSIO, FISÍCO DE MONSARAZ

 

A lenda das filhas do Mestre Ambrósio, Físico de Monsaraz


No início da centúria de 1500, devido à descoberta das terras do Novo Mundo, a cidade de Sevilha tornou-se a atração da aristocracia espanhola, não só para acompanhar a Corte, mas também, pelas novidades que chegavam nas caravelas dos descobrimentos!
As caravelas traziam novidades, mas também traziam dissabores, como novas doenças, até aqui desconhecidas, pelo que, existia uma grande equipa de Físicos (Médicos) ao serviço da Corte!
Da equipa de Físicos da Corte, fazia parte o Mestre Ambrósio que, embora não fosse o Físico - Mor, destacava-se dos outros, porque, prevendo esse acontecimento, antecipou-se muito cedo a estudar essas doenças e as respetivas mesinhas que aplicava aos doentes, ganhando fama na Corte, onde todos exigiam os seus serviços em detrimento dos outros Físicos!
A procura pelos serviços do Mestre Ambrósio aumentava dia a dia e ele já não tinha tempo para ir a casa, onde estavam a esposa e quatro filhas e quando se queixou ao Físico Mor, este disse-lhe para se mudar com a Família para a Corte!
O Mestre Ambrósio, não confirmou o convite sem falar com a esposa, mas quando lhe contou, ela respondeu que estava pronta para se mudar e, passados alguns dias, fizeram a mudança!
A esposa do Mestre Ambrósio, já tinha passado dos trinta anos de idade, mas era das mulheres mais lindas da cidade de Sevilha e como sabia isso, era dona de muita vaidade, logo, não podia perder a oportunidade de concretizar o seu sonho!
A linda senhora, passava por dama da Corte e, a sua beleza não passou despercebida a um fidalgo marialva, aventureiro que, lhe deu a volta à cabeça e, facilmente a convenceu a embarcar com ele, numa caravela rumo ao Novo Mundo, deixando as filhas entregues às Amas e uma carta escrita para o Mestre Ambrósio, com muitas desculpas e, poucas explicações sobre o abandono do marido e das filhas!
Quando o Mestre Ambrósio chegou a casa, já tarde e muito cansado, perguntou às criadas se sabiam onde ela se encontrava, mas a resposta foi a entrega da dita carta, deixando-o surpreendido, retirou-se para o seu quarto e, em pé cheio de curiosidade começou a ler, mas à medida que avançava na leitura ia perdendo as forças, acabando por se deixar cair sobre a cama onde ficou sem reação com a cabeça a fervilhar e começou a chorar!
Eram horas de jantar (ceia) e uma criada foi chamá-lo, mas ele respondeu que não queria ser incomodado e, para tratarem das meninas e deitá-las!
O Mestre Ambrósio passou a noite sem fechar os olhos a pensar no rumo a dar à sua vida, porque se ficasse ali, seria alvo de chacota, era mais um corno na Corte, mas isso ainda era o menos, mas as suas filhas passariam a ser as filhas do Físico corno, pelo que,decidiu partir!
De manhã cedo, saíu de casa e foi pedir para falar com o Físico Mor, foi logo recebido e como eram muito amigos, contou-lhe o que se tinha passado e disse-lhe que não podia ficar na Corte, nem em Sevilha, tinha decidido partir para a Corte do Reino de Portugal, porque sabia que também lá se debatiam com as mesmas doenças vindas nas caravelas dos descobrimentos, por isso, pedia-lhe credenciais de apresentação!
O Físico Mor, ouviu o mestre Ambrósio e não tentou demovê-lo da ideia de partir, ficou revoltado com a traição e foi logo tratar do seu pedido, passou-lhe excelentes credenciais e cartas de apresentação, com grandes elogios pessoais e profissionais, entregou-lhe os documentos, o dinheiro das contas e, deu-lhe um grande abraço de alento e despedida!
O Mestre Ambrósio saiu e foi falar com um rico mercador, senhor do comércio de grande parte dos reinos ibéricos, também seu amigo e contou-lhe da desgraça que lhe tinha caído em cima e disse-lhe que queria partir com as filhas e uma ama, na próxima caravana comercial que saísse de Sevilha para o Reino de Portugal!
O amigo mercador disse-lhe que, daí a oito dias saia uma caravana de Sevilha, cujo destino final era Lisboa, se ele quisesse, havia tempo para tratar de tudo e podiam seguir nessa caravana! O Mestre Ambrósio ficou aliviado, combinou tudo com o mercador que fez questão de não lhe cobrar nada, despediu-se e foi dar andamento ao que tinha de tratar e a prepara as suas filhas, dizendo-lhe que, partiam de Sevilha e estariam muito tempo sem ver a mãe, porque tinha partido num barco para o Novo Mundo ao serviço da pátria e, nem tinha tido tempo de se despedir delas! Como as crianças, tinham grande ligação às amas, não fizeram muitas perguntas e a situação ficou, aparentemente resolvida!
No dia e hora marcados, lá estava o Mestre Ambrósio com suas filhas e a ama, prontos para partir, munido das credenciais das cartas de recomendação e dos salvo condutos especiais para entrar no Reino de Portugal e foram recomendados pelo mercador ao guia Mor e guias chefes da caravana para receberem proteção e tratamento especial!
Assim, partiram da cidade de Sevilha na última semana do mês de Setembro de 1514, já tinham caído algumas chuvadas, mas os caminhos, ainda se faziam sem grandes problemas e, no dia de S. Miguel Arcanjo já estavam na cidade de Zafra, onde pararam mais tempo, dois dias a descarregar e carregar mercadorias nos grandes carros puxados por duas e três parelhas de mulas que iam sendo substituídas nos entrepostos da companhia!
No dia 01 de Outubro as caravanas partiram, seguindo uma pelas localidades que ficavam na direção do Reino de Portugal, com entrada em Mourão e a outra pela importante cidade de Badajoz, depois também entrava no Reino de Portugal em Elvas, entregando e recebendo cargas até Lisboa, onde ambas se encontravam!
O Mestre Ambrósio e as filhas, seguiram na caravana que entrava no Reino de Portugal em Mourão, dali rumavam a Évora e depois a Lisboa, onde deviam chegar dois ou três dias primeiro, do que a outra!
O Mestre Ambrósio e as filhas eram tratados e protegidos pelos guias chefes da caravana e, quando já estavam perto do Reino de Portugal, o guia Mor da caravana, meteu conversa com o Mestre Ambrósio e disse-lhe que, se o seu destino era a Corte portuguesa, não ia para o lugar certo, para Lisboa, porque, ele sabia que a dita Corte estava quase sempre na cidade de Évora, a qual, depois de Lisboa, era a cidade mais importante do Reino, mas disse-lhe que a decisão seria dele, porque o encargo que tinha, era deixá-los sãos e salvos em Lisboa!
O Mestre Ambrósio agradeceu a informação e ficou a pensar nisso, porque, se queria ser Físico da Corte, não devia ir para onde ela não estava, mas pensou que ainda tinha muito tempo para decidir até a caravana chegar à cidade de Évora!
Depois de mais uma noite de descanso, neste caso em Oliva, de madrugada deram ordem de partida e, cerca do meio dia estavam próximo de Vila Nueva del Fresno, avistando terras do Reino de Portugal, destacando-se no horizonte o Castelo da Villa de Mourão e o Castelo da Vila de Monsaraz! As meninas estavam muito cansadas e dormitavam, mas despertaram naquele momento e viram os ditos Castelos, fixaram-se no Castelo da Villa de Monsaraz e perguntaram ao pai:
Papá, o que é aquilo?
O quê? Perguntou o Mestre Ambrósio!
Aquilo além, e esticaram o dedinho indicador na direção do Castelo de Monsaraz!
Aquilo? É um Castelo, como tantos por onde passámos! Respondeu o Mestre Ambrósio!
A menina mais velha, já com onze anos, continuou:
Papá é além que eu quero ir morar!
As outras três, nem a deixaram acabar de falar e em coro gritaram: Eu também! Eu também! Eu também!
O Mestre Ambrósio não ligou, pensou que era brincadeira das meninas, mas estava enganado, elas não se calavam, gritavam, choravam repetindo sempre o mesmo! O Mestre Ambrósio, chamou o guia mor da caravana que passava perto e perguntou-lhe se aquele Castelo já ficava no Reino de Portugal? Ao que ele confirmou que sim! O Mestre Ambrósio, não disse mais nada, mas como as meninas não se calavam e ele já estava cansado daquela lamúria, pensou em lhe fazer a vontade, como já era em Portugal, ficavam ali uns tempos a descansar e depois logo se mudavam para Évora ou Lisboa! Então perguntou-lhe: Vocês têm a certeza que querem ir morar naquele Monte? Sim, sim, responderam as meninas em coro e, com tanta convicção que o pai, respondeu em voz alta: Então, naquele Montesará!
Depois da passagem do rio Guadiana nas barcas, a caravana parou na Vila de Monsaraz onde ficou mais uma noite, aí o Mestre Ambrósio pediu informações ao guia mor sobre a Vila e a que distância ficava da cidade de Évora, depois disse-lhe que ficavam ali, pelo menos uns dias e, mais tarde logo se mudavam para Évora ou Lisboa!
Fizeram as despedidas e agradecimentos e o Mestre Ambrósio, as filhas e a ama ficaram instalados na estalagem de Monsaraz, onde descansaram alguns dias, até ele começar a descobrir a Vila!
Quando o Mestre Ambrósio se apresentou ao Governador da Villa de Monsaraz, disse-lhe que era Físico castelhano e que se dirigia para a Corte portuguesa, mas queria ficar ali uns dias para fazer a vontade às suas filhas, mostrou-lhe o salvo conduto emitido pela Corte espanhola e pediu-lhe autorização para ficarem ali uns tempos!
O governador ficou desconfiado, porque, achou estranho um Físico da Corte de Castela vir assim, sem mais nem menos, para a Corte portuguesa, mas observou o salvo conduto e teve a certeza que não era falso, pelo que, limitou-se a dar-lhe as boas vindas e disse-lhe para estar o tempo que ele quisesse na sua Vila, no entanto, mandou que o tivessem debaixo de olho!
Já passava de um mês após a sua chegada, o Mestre Ambrósio continuava instalado na estalagem e, tanto ele, como as filhas, cada vez gostavam mais da Vila de Monsaraz, diziam que existia ali uma magia que os atraía e os fazia sentir muito bem, cada vez eram mais conhecidos na Vila, porque ele, embora sem licença, já tinha dado a conhecer a sua arte de Físico, ao salvar algumas vidas de montesarenses e marchantes, consideradas perdidas por outros Físicos!
Como os seus feitos começaram a ser muito falados e ele sem licença, podia ter problemas, então decidiu ir para Évora apresentar-se na Corte do rei D. Manuel I, o Venturoso, e resolver a sua situação, mas quando falou nisso às filhas, fizeram um pranto tão grande que, só se calaram quando ele lhe disse que ia sozinho e elas ficavam em Monsaraz com a ama, mas pensou que um dia isso ia mudar e, logo se mudavam, definitivamente!
O Mestre Ambrósio apresentou-se na Corte portuguesa em Évora, entregou as credenciais, esperou algumas horas e por fim foi recebido pelo Doutor Mestre Afonso, Físico Mor do Reino que, depois de uma longa conversa, marcou-lhe os exames para o dia seguinte!
O Mestre Ambrósio foi sujeito a exames teóricos e práticos, mais do que era normal, porque o Físico Mor ficou abismado com os seus conhecimentos, os quais, superavam o que estava escrito nas credenciais emitidas pelo Físico Mor da Corte espanhola, sendo logo convidado a ficar a prestar serviço na Corte portuguesa, mas o Mestre Ambrósio com delicadeza, explicou que não podia aceitar porque, por enquanto, não conseguia demover as filhas da ideia de morar na Vila de Monsaraz!
O Físico Mor compreendeu, mas como sabia que ia precisar dos seus conhecimentos, devido às novas doenças tropicais que chegavam ao Reino e que ele já sabia tratar em Sevilha, ficou decidido que se fosse necessário o mandava buscar a Monsaraz!
Assim, no dia 17 de Dezembro de 1515, depois de examinado pelo dito Doutor Mestre Afonso, o Mestre Ambrósio voltou para a Villa de Monsaraz, com a licença para exercer, livremente o seu ofício, porém, a partir desse dia, era chamado muitas vezes à Corte a Évora para tratar as doenças tropicais importadas nas caravelas dos descobrimentos e que se espalhavam por todo o Reino!
Ao contrário do que o Mestre Ambrósio pensava, as suas filhas cada vez ganhavam mais raízes na Villa de Monsaraz e, nem queriam ouvir falar na mudança para a cidade de Évora, foram crescendo e a sua beleza era idêntica à de sua mãe, pelo que, eram muito cobiçadas pelos rapazes de Monsaraz e de toda a região, desde fidalgos, juízes, militares, tabeliões, filhos de lavradores e outros!
A filha mais velha chamada Carmen, desde muito cedo, dedicou-se à caridade, com a ajuda do pai fundou um pequeno hospital onde tratava doentes peregrinos e outros passantes por Monsaraz, e recusou todos os pretendentes, ficando solteira!
A segunda na idade chamada Isa casou com um tabelião, a terceira era a Pepita e casou com um Juiz das Sacas e, a mais nova a Anamaria casou com um lavrador do Termo de Monsaraz, ficando todas arrumadas, mas como não há bela sem senão, chegou uma desgraça!
Cerca do ano de 1530, foi nomeado um governador da Villa de Monsaraz, um marialva que abusava de todas as raparigas e mulheres que fossem do seu agrado, na Villa e no Termo (Concelho), era muito poderoso e ninguém ousava fazer-lhe frente, porque, facilmente ia parar à forca, acusado de algum crime que não tinha cometido, uma vez que, os seus lacaios reuniam provas falsas, mas eram aceites pela justiça!
A casa da roda de Monsaraz, nunca tinha tido tanto movimento, onde eram deixadas as crianças filhos/as do governador e das raparigas abusadas que não as podiam assumir!
A Anamaria namorava com o lavrador, mas isso não impediu que caísse na mira do governador, mas como o Mestre Ambrósio se apercebeu, falou com ele e disse-lhe para se acautelar porque, tinha amigos na Corte e seria obrigado a informar o que ali se passava! O governador não gostou da ameaça e ainda pensou em lhe tratar da saúde, mas pensou melhor e preferiu não se meter em confusões, porque, sabia que era verdade, além da sua popularidade na Vila e abrandou os seus intentos! Pouco depois, realizou-se o casamento da Anamaria com o lavrador e o governador ficou sossegado!
A Anamaria depois de casada ainda estava mais bonita, era a figura de sua mãe e, ficou a residir numa casa senhorial na Villa de Monsaraz e o marido passava o tempo nas suas herdades, então, passados alguns meses o governador voltou ao mesmo, a todo o momento passava em frente à sua porta, mas como ela poucas vezes saía de casa, começou a mandar uma meretriz a levar-lhe os seus recados!
A entrada e saída da meretriz na casa da Anamaria, começou a dar nas vistas e as conversas a andar na boca do povo, diziam que, era mais uma amante do governador, tanto alastraram que acabaram por chegar aos ouvidos do marido, o qual, depois de mandar averiguar ficou a saber que não se passava nada, mas era verdade que o governador andava a perseguir a sua esposa, como fazia com muitas outras!
O lavrador pensou em várias formas de resolver a situação e decidiu contar aos irmãos sobre o que se andava a passar e entre todos decidiram que o melhor a fazer para resolver o caso era matá-lo, mas não podiam ser apanhados, senão, ninguém os livrava da Forca!
O marido da Anamaria, escolheu os melhores homens para fazer o serviço sem falhas, sendo ele, um dos irmãos e os três melhores homens de armas de sua casa e, debaixo de grande segredo começaram a estudar a maneira de fazer a emboscada, porque, sabiam que o governador saia da Villa, percorrendo o Termo (Concelho), mas sempre com alguns guardas, pelo menos cerca de quatro, bem armados, mas também sabiam que numa emboscada ficavam em desvantagem!
Depois de várias reuniões secretas, decidiram que, estavam em condições de fazer o serviço, um dos homens foi encarregado de saber as voltas do governador e, como ele quando saía da Vila, geralmente só voltava ao cair da noite, planearam cair-lhe em cima e tiravam-lhe a vida, sem nenhum se deixar apanhar!
Foi decidido pelo grupo que, para facilitar a fuga, sem ninguém desconfiar, o melhor lugar da emboscada era a Porta do Buraco, pelo que, tinham de escolher um dia que ele fosse para a área do rio Guadiana, uma vez que, era nesta porta que ele saía e entrava quando ia para sul!
Na noite escolhida, os homens do lavrador observaram o percurso do governador e, disfarçadamente acercaram-se da porta do Buraco, tiveram a seu favor a noite que caiu mais cedo e com algum nevoeiro, mas não contaram com a preparação dos cavalos dos guardas, estavam treinados para cenários de batalhas e de emboscadas, ao contrário dos deles que, quando entraram em confronto, assustaram-se e queriam fugir, não os conseguiam dominar, o que lhe dificultava o ataque e a defesa, na contenda, conseguiram ferir gravemente o governador e mataram um dos guardas, mas logo a seguir foram cercados e o irmão do lavrador foi ferido com gravidade, um dos seus homens foi morto e os outros dois tiveram de fugir!
O lavrador não quis fugir e deixar o irmão estendido no chão sem auxílio e foram ambos presos! O irmão muito ferido foi metido na prisão e acabou por morrer nessa noite e, ele foi presente ao Corregedor no dia seguinte! Como não havia testemunhas e o governador estava gravemente ferido, sem condições para apresentar queixa e prestar declarações, o lavrador recolheu à prisão e só quando o governador melhorou é que o Corregedor deu andamento ao processo, mas todos sabiam que, o fim do lavrador era a Forca de Monsaraz!
O governador de Monsaraz, ora melhorava, ora piorava e eram muitos os Físicos (Médicos), alguns vindos de Évora que o andavam a tratar, sem a participação do Mestre Ambrósio, uma vez que, era a sua Família a protagonista do caso!
Passaram mais de três meses e existiam poucas esperanças do governador sobreviver, acabaram por pedir auxílio ao Mestre Ambrósio e, ele como Médico, não o podia negar, mas também estava interessado que o governador sobrevivesse, podia ser uma atenuante para que o genro não fosse condenado à Forca, por isso, dedicou-se a tratá-lo e conseguiu curar o governador que, por reconhecimento ao Mestre Ambrósio fez um requerimento ao rei D. João III, o Piedoso, a pedir o perdão do lavrador, no qual pedia, no máximo o desterro de uns anos para o Brasil, mas entretanto, chegou a Monsaraz uma carta do dito Rei, pela qual mandava enforcar o lavrador, devido a um pedido de um irmã do governador, assim, quando o perdão do Rei chegou a Monsaraz, apenas com três anos de desterro para o Brasil, já o lavrador tinha sido enforcado, havia um mês!
Foi grande desgosto para as gentes de Monsaraz e maior para a Anamaria e família, mas no fundo sabiam que o lavrador tinha errado, ao tentar matar o governador, tinha sido muito imprudente e seria impossível passar sem castigo, embora os montesarenses culpassem o governador por ter feito perder a cabeça ao lavrador e o ter levado a cometer o crime!
O governador depois de recuperado andou afastado da porta da Anamaria, mas em menos de seis meses já andava de garras de fora, passando à sua porta e como não a avistava, fez voltar a meretriz ao serviço a levar-lhe recados, dizendo-lhe que não queria que tivesse acontecido o que aconteceu a lavrador e que tinha pedido ao rei para lhe perdoar e não ser enforcado e que queria falar pessoalmente com ela!
A Anamaria tinha-lhe muito ódio e respondia sempre que não estava em condições para o receber, para esperar mais um tempo e a deixa-se fazer o luto!
Passados alguns dias lá estava a meretriz a bater à porta para falar com ela da parte do senhor governador que, mandava dizer que apenas queria falar com ela, para lhe explicar que tinha feito tudo para salvar o seu marido da Forca e que não queria mais nada dela!
A Anamaria, já não tinha descanso e o pai reparava no vai vem da meretriz, ficou revoltado e foi ter uma conversa com a filha e disse-lhe que estava ali para a ajudar, por isso, se ela quisesse, tinha um plano que ambos iam concretizar e acabar com o problema de uma vez, mas tinha de ser muito secreto, porque o governador tinha olhos e ouvidos por todos os cantos de Monsaraz!
A Anamaria pediu ao pai para não se sacrificar por ela, porque, o mais certo era acabar na Forca e, se a cruz dela era aquela, seria ela a resolver a situação, por isso, não queria que a Família caísse em desgraça por sua causa, quando se sentisse melhor, logo recebia o governador e resolvia isso com ele!
O Mestre Ambrósio perguntou-lhe se fazia isso de ânimo leve ou se era um sacrifício para ela? Ela respondeu que lhe tinha ódio, mas não encontrava outra maneira de resolver a situação e só Deus a podia ajudar! Então o pai, disse-lhe que já tinha um plano infalível, mas só podia ser com a sua participação e explicou-lhe que bastava recebê-lo, a primeira vez tinha de se mostrar muito abatida e falar o menos possível, mas dar-lhe esperança de o voltar a receber e ser diferente, depois o segredo estava numa garrafa de vinho e explicou-lhe como tudo teria de ser feito! Na segunda visita, tinha de se mostrar alegre e fingir que a visita lhe fez bem, depois oferecia-lhe vinho de uma garrafa que ele já tinha preparada com quase um ano, bem lacrada que sabia ele não resistia, antes dava instruções à criada para quando ela pedisse levar-lhe chá e aquela garrafa de vinho mas fechada para ele a abrir e verificar que estava lacrada de há muito, aquele vinho seria o seu fim, sem deixar qualquer prova! Sabia que ele não bebia mais de meia garrafa, ela se encarregava disso, depois fazia desaparecer o resto do vinho e a garrafa, ele mesmo a ia buscar, mas abria uma igual e vazava o vinho até ao sítio onde o governador tinha deixado a outra, depois no dia seguinte chamava os criados de casa e dava-lhe um copo de vinho dos restos dessa garrafa e estava tudo resolvido!
A Anamaria confiou no pai e aceitou fazer tudo como ele lhe disse, recebeu o governador e fez tudo à risca, na segunda visita do governador a Anamaria mandou vir o chá e o vinho que o pai tinha recomendado, o governador ficou desconfiado, mas ao ver aquele vinho das terras de Monsaraz, deitou a mão à garrafa, olhou, olhou, até que pegou no saca rolhas e como teve a certeza que não havia ali nada de anormal, ainda mirou o copo e por fim encheu-o e provou, abanou a cabeça em aprovação e bebeu o resto! Ainda perguntou à Anamaria se não queria um copo de vinho, porque era o melhor vinho que alguma vez tinha bebido! Bebeu mais um copo e ficou com muita pena de deixar a garrafa meia, porque ela disse-lhe que estava na hora de se recolher, mas se ele quisesse no dia seguinte podia voltar! O governador ficou muito contente e disse que sim, voltaria na noite seguinte, levantou-se, agradeceu e despediu-se pensando que a Anamaria já era sua!
A Anamaria, esvaziou o resto do vinho daquela garrafa e escondeu-a bem, para o pai a fazer desaparecer e abriu outra exatamente igual, esvaziou o vinho até onde tinha ficado a anterior e deixou-a guardada para na manhã seguinte a dar a beber aos criados e, assim aconteceu!
O governador passou o dia que parecia andar maluco, fazia tudo o que lhe pediam, nunca o tinham visto assim, tão feliz, o dia pareceu-lhe longo de mais, parecia nunca mais chegar a noite para ir para a casa da Anamaria, sentia-se muito bem, mandou servir a ceia mais cedo do que o habitual, não lhe fosse fazer mal quando chegasse à cama da Anamaria, mas depois da ceia, quando se foi levantar da mesa, a força das pernas tinha desaparecido, tentou várias vezes e não queria acreditar, não conseguia pôr-se em pé! Pensou logo que, eram efeitos do que tinha comido, daí a pouco, borrou-se todo pelas pernas abaixo, tiveram de o lavar e levar em braços para a cama, pensaram que a ceia lhe tinha caído mal, fizeram averiguações, mas ninguém encontrava explicação para o sucedido, uma vez que, muita gente tinha comido do mesmo e estavam bem!
O governador já acamado desfazia-se em fezes, passou a noite numa desgraça não sendo possível comparecer no tão desejado encontro com a Anamaria! Foi logo chamado o seu Físico (Médico) que receitou algumas mesinhas, mas de pouco serviram, o governador deixou de comer e cada dia que passava estava pior! Como os físicos não conseguiam tratar a doença foi chamado o Mestre Ambrósio que tinha o antídoto, mas estava decidido a levar a sua vingança por diante, porque não há duas sem três e ele voltaria ao lugar do crime, por isso, aplicou-lhe uma pitadinha do antídoto e o governador melhorou, mas como a mesinha não era completa, passados alguns dias voltava ao mesmo!
O Mestre Ambrósio estava perante um dilema que lhe tirava muitas horas de sono, se curasse o governador ele voltava a molestar a Anamaria e as mulheres indefesas de Monsaraz, mas como Médico e sabendo o antídoto, se o deixasse morrer era um crime aos olhos de Deus, além da sua deontologia não o permitir!
Depois de muito pensar sobre a decisão a tomar, foi ouvir a opinião da filha, só ambos sabiam a causa da agonia do governador! O Mestre Ambrósio perguntou à filha se dava, ou não, a mesinha ao governador? A Anamaria não respondeu, esteve algum tempo em silêncio a pensar no que ia acontecer logo que o governador estivesse curado, a primeira a ser abusada seria ela pelo homem que odiava e quando estivesse grávida era substituída por outra e outra! Ao fim de alguns minutos abanou a cabeça apenas duas vezes em sinal negativo, estava a condenar o governador à morte, mas não tinha alternativa, o pai levantou-se e saiu sem dizer uma palavra, estava decidido que, o governador tinha de partir, todos e todas em Monsaraz, ficariam em paz e, foi o que aconteceu!
Depois da partida do governador para o reino de Deus, ou do diabo, os seus lacaios e as justiças da Vila de Monsaraz desconfiados que ele tinha sido envenenado, pediram relatórios aos Físicos que o trataram, sobre as causa da morte e todos foram unânimes que não foram encontrados indícios de envenenamento e o Mestre Ambrósio acrescentou que, na sua opinião a causa do falecimento tinha sido moléstia não identificada trazida do Novo Mundo! Assim, os aposentos do governador foram desinfetados e fechados durante um mês e não houve averiguações, porque não tinham por onde começar!
O governador nunca mencionou que tinha bebido o vinho, nem sequer a visita à casa de Anamaria e mesmo que o tivesse feito, as justiças nunca conseguiam descobrir nada, porque o Mestre Ambrósio era um homem da arte e da ciência e tinha preparado aquela garrafa lacrada, igual a outras, para no caso de ser necessário resolver algum problema grave com ele ou com a sua família! Também tinham o testemunho dos criados que, acabaram por beber o resto do vinho, supostamente da mesma garrafa e, não tiveram nenhum desarranjo intestinal, nem qualquer outra maleita, por isso, foi tudo muito bem planeado e executado pelo Mestre Ambrósio e pela Anamaria que, deste modo vingaram a morte de seu marido na Forca e as infelizes e indefesas raparigas abusadas pelo poderoso governador de Monsaraz!
O Mestre Ambrósio ainda ficou por muitos anos na Vila de Monsaraz a exercer o seu ofício, a praticar o bem, assim como, as suas filhas!
A Anamaria dedicou-se ao hospital dos pobres e peregrinos, como ajudante da sua irmã Carmen e, também já não casou!
Ainda hoje, existem descendentes desta família a praticar o bem, pelas terras de Monsaraz.
Da mãe que as abandonou, nunca mais tiveram notícias, mas não lhes faltou amor da sua ama e de seu pai!
Bem Haja, Mestre Ambrósio!
A MESTRE AMBRÓSIO, FÍSICO CASTELHANO, MORADOR EM MONSARAZ, É DADA LICENÇA PARA USAR DA ARTE E DA CIÊNCIA DO SEU OFÍCIO, DEPOIS DE EXAMINADO PELO DOUTOR MESTRE AFONSO, SEU FÍSICO-MOR.
NÍVEL DE DESCRIÇÃO
Documento simples Documento simples
CÓDIGO DE REFERÊNCIA
PT/TT/CHR/K/24/176-531
TIPO DE TÍTULO
Formal
DATAS DE PRODUÇÃO
1515-12-17 A data é certa a 1515-12-17 A data é certa
DIMENSÃO E SUPORTE
24 linhas.
EXTENSÕES
24 Livros
ÂMBITO E CONTEÚDO
El-rei o mandou pelo doutor mestre Afonso, seu físico-mor. Álvaro Neto a fez.
COTA ATUAL
Chancelaria de D. Manuel I, liv. 24, fl. 176
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo)
Fim
Texto: Manuel Correia - Amigos de Capelins
Fotografia: Isidro Pinto - Monsaraz A Caminhar
A imagem pode conter: vivenda e ar livre