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quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A LENDA DOS AGUADEIROS DA CEIFA DO RONCÃO

 A lenda dos aguadeiros da ceifa do Roncão


Foto da Net


O mês de Maio, começou a anunciar a época das ceifas e, o manajeiro da herdade do Roncão, o ti Zé Domingos, foi incumbido pelo feitor, para falar ao rancho de ceifeiras e ceifeiros, ficando ao seu critério meter pessoas de novo, além das que já faziam parte do rancho dos anos anteriores!
O ti Zé Domingos, todos os anos, tinha muitos pedidos de pessoas que chegavam às terras de Capelins, algumas só para fazer a ceifa, porque, aqui ganhavam sempre mais alguns réis por dia, mas também, tinha pedidos para iniciadas e iniciados nesse duro trabalho, entre eles, os de dois compadres para meter para lá os gaiatos mais novos, porque, já estavam em boa idade de aprender a ceifar!
O ti Zé Domingos, não tinha lugar para os dois gaiatos, mas não podia aceitar apenas um e, fazer uma desfeita ao outro compadre, por isso, depois de muito pensar, mandou apresentar os dois no dia do começo da ceifa, mas antes teve uma conversa com os compadres e, foi muito franco com eles, disse-lhes que, além de não ter lugar para os dois, juntos não ia dar certo, porque, eles tinham fama de brincalhões e pediu-lhes para lhes darem um aperto, antes da sua apresentação lá na ceifa do Roncão!
Os compadres do ti Zé Domingos, assim fizeram, cada um, teve uma conversa muito séria com o respetivo filho e, foi-lhes dito que, se lhe sujassem a cara, (ato de desonra), levavam uma sova que, lhe ficava na lembrança para toda a vida! Ambos os rapazes, responderam aos pais que, não os faziam passar essa vergonha!
A ceifa na herdade do Roncão começou em força, era um bom ano de pão e, nesse ano tinham semeado a folha (parcela de terra) maior e melhor, logo, esperava-se grande colheita! Os gaiatos, eram considerados já homens por algumas ceifeiras e ceifeiros e, na sua opinião, já deviam saber ceifar há muito tempo, mas tinham andado de ajudas de pastores e porqueiros e, só nesse ano se iniciavam nesse trabalho onde se ganhava mais alguma coisita!
Como o Artur e o Xico eram muito franzinas, o manajeiro, como era amigo dos pais, para os aliviar da ceifa e de carregar os molhos para os relheiros, meteu-os em aguadeiros, iam encher os cântaros ao poço e, depois, distribuíam os cochos (recepiente em cortiça) de água pelas mulheres e pelos homens à medida que iam pedindo!
O manajeiro, tinha o cuidado de não mandar os gaiatos juntos ao poço, para evitar brincadeiras entre eles pelo caminho ou lá no poço, mas um dia, a água estava no fim e como eles andavam muito acertadinhos, disse-lhe para irem depressa, encher os cântaros, para terem água fresca para os gaspachos da merenda!
O Artur e, o Xico Mendes, pegaram nos cântaros e abalaram em passo apressado até ao poço que, ficava a mais de quinhentos metros perto da Ribeira, de onde andavam a ceifar, quando chegaram, o Artur, o mais novo e mais atinado, pegou no balde e deixo-o deslizar até ao encontro da água e, quando se preparava para o abanar para ele se virar e encher de água, o Xico encheu as mãos de água de um tanque que estava pegado ao poço e, despejou-a pela cabeça do Artur que, embora não lhe caísse mal, devido ao calor que fazia, entusiasmou-se com a brincadeira e foi tentar fazer o mesmo ao Xico, esquecendo-se da corda, que tinha nas mãos e, deixou-a cair no poço, em cima do balde que, ao encher afundou! Os rapazes ficaram paralisados a olhar um para o outro, sem reação, mas por fim exclamaram em uníssono: Então e agora?
Artur: Agora, não sei o que fazemos, mas sei que, se não levamos a água fresca para os gaspachos da merenda somos despedidos e é uma vergonha para mim e para o meu pai!
Xico: Pois é, e eu não posso ser despedido, prometi ao meu pai que isso, nunca ia acontecer e, se isso acontecer tenho uma sova prometida pelo meu pai!
Artur: Olha, tens tu e tenho eu! E tenho a certeza que não me escapo, se sou despedido é uma vergonha, uma desonra para o meu pai!
Xico: Nesse caso, temos de arranjar maneira de tirar o balde do fundo do poço e depressa, par o ti Zé Domingos não dar por nada!
Artur: Olha, arranja lá tu uma maneira, a culpa foi toda tua, se não me tens molhado, isto não tinha acontecido! És sempre a mesma coisa, por isso, agora amanha-te! Se isto correr mal, eu vou dizer que a culpa foi toda tua!
O Artur e o Xico, deram voltas à cabeça, para tentar arranjar maneira de tirar o balde do fundo do poço e depressa!
Sabiam que, não podiam voltar sem água, não podiam ir ao Monte do Roncão buscar uma corda e uma fatecha, senão, eram logo apanhados pelo feitor e despedidos! Ainda pensaram em fazer uma corda de buínho entrelaçado e fazer uma fatecha de um ramo de um freixeiro, mas isso, levava a tarde toda, não podia ser!
Depois de esgotadas as poucas ideias, o Xico aceitou que a culpa tinha sido dele, por isso, disse que ia descer pelas paredes do poço até ao fundo, a buscar o balde! O Artur opôs-se, imediatamente e disse que, era ele que descia ao fundo do poço, porque, sabia nadar muito bem e já tinha descido muitas vezes pelas paredes de outros poços, a tirar os pássaros que caiam na água e, como aquele poço até tinha uma fila de buracos de alto a baixo onde ele podia pôr os pés e as mãos, por isso, era ele que descia ao fundo do poço e, quando chegasse à agua dava um mergulho, apanhava a corda do balde atava-a à cintura e subia por onde tinha descido!
O Artur descalçou-se logo, despiu as calças e a camisa, ficou em ceroulas, agarrou-se ao gargalo do poço, virou-se de costas para dentro e começou a descer muito devagar, recebendo instruções do Xico que foi a correr para o outro lado do gargalo de onde via bem os buracos e, dizia-lhe a posição dos pés para acertar nos buracos! A descida, foi mais difícil do que parecia, mas como se costuma dizer, para baixo, todos os santos ajudam e, o Artur lá chegou à água que, estava tão límpida, que deixava ver o fundo do poço, a corda e o balde, também, porque, o mesmo era largo, deixando entrar muita luz e, embora tivesse mais de três metros de altura de água, de onde não descia devido a ter bom nascente, isso, não meteu medo ao Artur que, mergulhou até ao fundo, parecia um peixe a nadar!
O Artur apanhou a corda, veio à tona e atou-a à cintura, depois, começou a subir a parede do poço, mas à medida que subia, o cansaço e insegurança começaram a tomar conta dele, sendo o esforço cada vez maior e, parecia que nunca mais chegava lá acima!
O Xico, começou a ficar em pânico, mas incentivava-o para se aguentar, ou então, eram despedidos e tinham a sova certa, mas a dificuldade era cada vez maior e as forças estavam mesmo no limite, o Artur estava quase a largar as paredes do poço, com tanto cansaço já não sentia o corpo, estava à beira de uma queda de costa na água, porém, sem se aperceber já estava abraçado ao gargalo do poço, parou e ficou naquela posição uns cinco minutos, com as pernas pendentes para dentro do poço, a descansar, por fim, com a ajuda do Xico, lá conseguiu alçar uma perna e sair de cima do gargalo, ficou um pouco atónito sentado no chão e o Xico encheu os dois cântaros e foram a correr até junto do rancho da ceifa, esperando uma desanda do manajeiro, mas já tinham combinado em dizer-lhe que estavam lá pessoas a tirar água com o balde e, tiveram de esperar, mas não foi preciso, porque, ele andava afastado dali, ajudando os homens a atar e a juntar os molhos e, não se apercebeu da sua chegada! Os rapazes meteram os canudos nos dedos, pegaram nas foices e baixaram-se ao lado das ceifeiras, a ceifar o trigo, mas por pouco tempo, porque foi dada ordem de merenda, embora eles, devido ao sucedido, nem tinham vontade de comer!
O Artur e o Xico, já não disseram uma palavra, até ao pôr do sol que, era a hora da solta, trabalhavam do nascer ao pôr do sol, neste caso, antes do nascer do sol, para desconto da sesta, só depois comentaram o perigo onde o Artur se tinha metido, mas estavam safos daquela aventura!
Mais tarde, contaram aos outros rapazes lá do Roncão, o feito do Artur, acabando por chegar aos ouvidos dos mais velhos que, conheciam muito bem o poço e, todos foram unânimes em afirmar que, era uma mentira dos gaiatos, porque, garantiam que, ninguém conseguia descer ao fundo daquele poço e subir agarrado às paredes sem uma corda atada por baixo dos braços, agarrada por outros homens lá em cima e, como ninguém acreditou na façanha do Artur, para bem dos aguadeiros, acabou por ficar esquecida, até agora!
Os aguadeiros da ceifa do Roncão, o Artur e o Xico Mendes, continuaram a encher os cântaros no dito poço, mas com muito respeito um pelo outro e, nunca mais houve brincadeiras, até ao fim da ceifa.
Fim 

"Texto Correia Manuel Amigos de Capelins"

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