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quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A LENDA DO GASPAR OLIVEIRA, CURTIDOR DE PELES, DE MONSARAZ


História, lendas e tradições da Vila de Monsaraz

A lenda do Gaspar Oliveira, curtidor de peles, de Monsaraz








Gaspar Oliveira, era um rapaz natural e residente na Vila de Monsaraz, onde nasceu no ano de 1621, filho do ferrador Belchior Vaz e de Catarina Oliveira, com a profissão de curtidor de peles que, aprendeu muito cedo, uma atividade rentável, porque as peles e couros eram exportados legalmente e em contrabando para o vizinho Reino de Castela!
O Gaspar Oliveira foi sempre rebelde, respeitava todos/as os/as montesarenses, porém, quando bebia uns copos de vinho dava-lhe para se meter com os padres de Monsaraz, não gostava de padres e, sempre que algum passava pela rua da taberna onde se encontrava, se o mesmo fosse de batina, mandava-lhe piropos e assobios de insulto, sendo motivo de galhofa dos companheiros da taberna!
Alguns padres não lhe ligavam, por saberem que eram efeitos do vinho, ou não, mas outros, não gostavam e faziam queixas ao Prior, o qual, um dia foi ter com ele ao trabalho e tiveram uma longa conversa e, o Prior disse-lhe que se a sua atitude chegasse aos ouvidos da Santa Inquisição ele podia acabar mal!
O Gaspar Oliveira, pediu desculpa ao Prior e prometeu-lhe que nunca mais voltava a meter-se com os padres, mas a promessa durou apenas cerca de seis meses e voltou a fazer as mesmas gracinhas!
Como o Gaspar Oliveira não tinha emenda, alguém, talvez um dos padres, fez uma denúncia anónima à Santa Inquisição, onde escreveu que ele era "marrano", ou seja, falso cristão, que atentava contra a Fé Católica e praticava o judaísmo!
Os Inquisidores Apostólicos do Tribunal do Santo Ofício mandou dois Comissários para a Vila de Monsaraz para seguirem os passos do Gaspar Oliveira e de outros suspeitos e não foi necessário investigar muito, para se confirmar o que escrevia o denunciante! Assim, no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil seiscentos e quarenta e quatro, no dia oito do mês de Agosto, ao nascer do sol, estava o Gaspar Oliveira a acabar de comer umas migas gatas, para ir para o seu trabalho, chegaram dois Comissários do Santo Ofício e leram a escrita no mandado, meteram-no numa carroça gradeada que tinha chegado durante a noite, pediram vinte mil réis ao ferrador Belchior Vaz, seu pai, para a sua alimentação, mais quinhentos cruzados para despesas com a sua prisão e, depois de tudo tratado, partiram com ele para o Tribunal do Santo Ofício em Évora!
A viagem foi longa, muitas horas de caminho, entre Monsaraz e Évora, com muito sofrimento, o sol ardente do dia 8 de Agosto entrava pelas grades, passou muita sede e fome, por fim, à tardinha chegaram à cidade de Évora! O Gaspar Oliveira foi empurrado para dentro de uma casa escura, onde, devido ao cansaço adormeceu, sendo acordado passadas algumas horas pelos Comissários e pelo inquisidor que se fazia acompanhar do seu processo de acusação!
O Gaspar Oliveira acordou assustado, não sabia onde estava, mas a ver aqueles homens, pressentiu que estava metido num grande problema, mas quando lhe perguntaram se sabia porque estava ali e do que era acusado, respondeu que não fazia a mínima ideia, nunca tinha feito mal a ninguém, trabalhava desde criança e nunca tinha roubado nada!
O inquisidor disse-lhe que, era acusado de atentar contra a Fé Católica, por isso, o melhor era ele colaborar, porque já sabiam tudo e, se dissesse a verdade, isso podia abonar a seu favor!
O Gaspar Oliveira respondeu que não tinha nada a esconder, toda a gente o conhecia em Monsaraz e sabiam que ele nunca foi contra a Fé Católica, tinha de haver algum engano, deviam estar enganados com a pessoa que queriam prender! O inquisidor acenou para o processo e respondeu: Está tudo aí, não há nenhum engano!
A seguir, o inquisidor conferiu a identificação do Gaspar Oliveira e deu início ao interrogatório:
Inquisidor: Então o senhor Gaspar Oliveira professa a Fé Católica? Ou professa outra? Por exemplo a judaica!
Gaspar: Claro que professo a Fé Católica, senhor, não conheço outra, muito menos essa que fala! Olha que pergunta! Ora essa!
Inquisidor: Vamos lá ter calma, aviso-o de que, para seu bem, limite-se a responder ao que lhe pergunto e não faça comentários! Diga-me lá, a que Santas Missas assiste lá em Monsaraz, em que dias e em que Igrejas?
O Gaspar ficou sem resposta, estava apanhado pelo inquisidor, mas ripostou!
Gaspar: Bem! Bem! Eu agora não tenho assistifo a missas, um dia fui, mas a Igreja de Santa Maria da Lagoa estava cheia até à porta, fiquei mesmo aborrecido, tive de me ir embora e além disso o trabalho tem sido muito, mas posso dizer-lhe que agora começo a ir todos os Domingos!
Inquisidor: O antes, já passou, eu perguntei se neste momento ia às missas! A sua resposta, foi que não, porque parece que tem muito trabalho, porém, temos testemunhas que tem muito tempo para ir para as tabernas de Monsaraz a beber e a ofender a Fé Católica, fazendo chacota dos Párocos de Monsaraz! Mas vamos em frente, uma vez que não vai à Igreja, diga-me lá se reza, se faz as orações a Cristo Nosso Senhor, em sua em casa?
Gaspar: Faço, faço, por acaso até faço, sempre antes das refeições e antes de me deitar!
Inquisidor: Nesse caso, valha-nos isso, então vamos lá, diga as orações que reza e incluindo o Pai Nosso e Avé Maria!
Gaspar: Agora estou tão desvairado da minha cabeça que não me lembro de uma única palavra!
Inquisidor: Vá lá, temos muito tempo, um Cristão lembra-se sempre, pode começar pode onde quiser!
Gaspar: Como já lhe disse, senhor doutor, não me lembro de uma única palavra! Estou tão nervoso que se varreu tudo da minha cabeça!
Inquisidor: Ah varreu-se tudo da sua cabeça? Sabe que está aqui no processo que o senhor Gaspar Oliveira nunca entrou numa Igreja em Monsaraz e que professa o judaísmo?
O Gaspar Oliveira, estava desesperado, já tinha percebido que tinha caído nas malhas da Santa Inquisição!
Gaspar: Alto lá, nada disso é verdade, quando era pequeno entrei muitas vezes com a minha mãe nas Igrejas de Monsaraz e sobre o jadaísmo, não sei nada disso, nem sei como se reza!
O inquisidor continuou a fazer-lhe perguntas, mas ele já estava tão baralhado que nem pensava no que respondia! O inquisidor assim que o viu baralhado, aproveitou e passou para outros terrenos e começou a fazer-lhe perguntas sobre os rituais judaicos e o Gaspar Oliveira, inocentemente confirmava que fazia aqueles rituais, diariamente!
Quando acabou o interrogatório o Gaspar Oliveira estava desgraçado, sem dar por isso, tinha confirmado o que constava na denuncia, assim como, no processo organizado pelos Comissários que o tinham seguiido em Monsaraz, sendo atirado para o cárcere do Tribunal da Santa Inquisição em Évora
Ainda nesse dia, a notícia da sua prisão, espalhou-se por Monsaraz, chegando aos ouvidos da sua noiva, a Maria da Piedade, cujo casamento de ambos estava marcado para Domingo dia 25 de Setembro seguinte!
As Gentes de Monsaraz ficaram chocada com a notícia, porque sabiam que o Gaspar Oliveira, não ia ter bom fim, já havia história na família, o mais certo era ir parar à fogueira ou pelo menos, dez ou vinte anos a remar nas Galés, de onde não voltaria!
No processo do Gaspar Oliveira constava que, ele tinha declarado ser praticante do judaísmo, pelo que, seguiu para julgamento no Tribunal do Santo Ofício, ficando encarcerado, onde asssitia, periódicamente à saída de pessoas acusadas como ele, para serem queimadas vivas na fogueira, na Praça do Geraldo, pensou que, seria esse o seu fim e chorava a pensar no amor da sua vida a Maria da Piedade!
Passou o dia do casamento e nem sinais do julgamento, em Monsaraz toda a gente dizia que, o Gaspar Oliveira não ia escapar de morrer queimado na fogueira e, a Maria da Piedade já se considerava viúva, vestindo vestes negras da cabeça aos pés!
Passaram mais de dois anos e o ferrador Belchior Vaz, como ferrava cavalos de fidalgos e de escudeiros da Casa de Bragança, pedia ajuda a todos para salvar o filho da fogueira, dizendo que ele era inocente daquela acusação, mas todos respondiam que não se podiam meter nos assuntos da Santa Inquisição, no entanto, prometiam que iam ver o que podiam fazer, porque, alguns eram familiares de padres Comissários!
Como alguns fidalgos e escudeiros intercederam, junto de Comissários, talvez por isso, o auto de fé do Gaspar Oliveira foi marcado para o dia 11 de Novembro de 1646!
O Gaspar Oliveira entrou para o cárcere do Tribunal do Santo Ofício com 25 anos, tinha agora 27 anos de idade, mas parecia um velhinho! No Tribunal do Santo Ofício fizeram-lhe as mesmas perguntas a que tinha respondido dois anos antes, mas negou tudo, embora admitindo que, no interrogatório tinha respondido assim, porque não tinha percebido as perguntas e afirmou que nunca tinha praticado judaísmo e nunca tinha atentado contra a Fé Católica! Porém, de nada serviram as suas palavras, porque, para o Tribunal do Santo Ofício o que era válido, era o que estava confirmado no processo de setenta e quatro páginas, sendo-lhe aplicada a seguinte pena:
Sentença: auto-de-fé de 18-11-1646. Abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, sem remissão, instrução na fé, penas e penitências espirituais!
Perante esta sentença, o Gaspar Oliveira ficou destroçado, no entanto, valeu-lhe não ser condenado a morrer queimado na fogueira na Praça do Geraldo em Évora e nem ir remar para as Galés!
O Gaspar Oliveira recolheu ao cárcere sem data de libertação, deixando a Maria da Piedade na situação de viúva, provavelmente nunca podiam casar e, como era muito bonita não demoraram em aperecer pretendentes que, ela sempre declinou, mantendo a esperança de ele voltar a Monsaraz!
O ferrador Belchior Vaz, não desistiu de ajudar o filho e continuava a pedir ajuda aos seus clientes, mas as respostas não eram animadoras, já passados dois anos, foi ferrar o cavalo de um escudeiro da Casa de Bragança e pediu-lhe ajuda! O escudeiro disse-lhe que não podia fazer nada, por ser um assunto muito melindroso, uma vez que era do foro da Santa Inquisição, mas como teve muita pena dele, explicou-lhe os passos a dar, sem garantia de sucesso e disse-lhe que podia usar o seu nome!
O escudeiro explicou-lhe que devia ir a um tabelião e mandar escrever um requerimento ao Tribunal do Santo Ofício, mas devia entregá-lo a um Comissário da Santa Inquisição seu amigo, natural da Aldeia de Reguengos, falava primeiro com os seus pais que tinham origem da Vila de Monsaraz, ditava ao tabelião o pedido de clemência por o Gaspar Oliveira não praticar judaísmo e ser um homem bom, depois, ia à Aldeia de Reguengos falar com os pais do Comissário e combinavam quando podia ser recebido pelo mesmo para lhe entregar o requeirmento!
O mestre Belchior seguiu à risca o que o escudeiro lhe indicou e depois foi à Aldeia de Reguengos falar com os pais do dito Comissário, os quais, tiveram pena dele e prometeram que o ajudavam e que podia voltar daí a dois dias que, o filho ia recebê-lo!
O mestre Belchior assim fez e, conforme combinado, passados dois dias foi recebido pelo Comissário e, à sua maneira, contou-lhe o que se tinha passado com o filho e ele prometeu-lhe que o ajudava, mas não garantia a sua libertação imediata!
O mestre Belchior agradeceu-lhe, despediu-se dele e dos pais e partiu para Monsaraz com pouca esperança de conseguir a libertação do filho, mas os pais do Comissário pediram-lhe para fazer tudo o que pudesse pelo Gaspar Oliveira!
Quando o Comissário chegou a Évora, fez um relatório para juntar ao requerirmento e entregou tudo ao Tribunal do Santo Ofício!
Passados oito dias, o Comissário foi chamado à presença do Inquisidor que, lhe fez algumas perguntas e o confrontou com algumas afirmações que constavam no processo do Gaspar Oliveira e, ele respondeu que não podia negar o que estava escrito no processo, mas sabia através de fonte segura que algumas atitudes do Gaspar Oliveira, eram apenas de rebeldia, acreditava que ele conhecia alguns rituais do judaísmo, qualquer pessoa conhecia, mas não era praticante, nem afrontava a Fé Católica!
O Inquisidor não fez mais perguntas, perante o parecer do Comissário, escreveu que, podiam libertar o Gaspar Oliveira e retirar-lhe a acusação, apenas devia cumprir algumas penitências espirituais e nada mais!
Assim, no dia 18 de Dezenbro de 1848, depois de quatro anos, quatro meses e dez dias no cárcere da Inquisição, o Gaspar Oliveira, de Monsaraz, foi libertado e, na manhã do dia seguinte, já estava na vila de Monsaraz!
A Maria da Piedade que, teve sempre esperança na sua libertação, esperou por ele, porque, era o Gaspar Oliveira que ela amava, assim, passados três meses, no Domingo, dia vinte e oito de Março de 1649 realizaram o seu casamento na Igreja de Nossa Senhora da Lagoa em Monsaraz!
O mestre Belchior, em reconhecimento, foi à Aldeia de Reguengos agradecer aos pais do Comissário, ajoelhando-se a chorar aos seus pés, deixando-os muito comovidos e convencidos que tinham feito justiça!
O Gaspar Oliveira voltou a exercer a sua profissão de curtidor de peles, com muita dedicação, conseguindo uma vida económica muito desafogada e, para mostrar que era um bom Cristão, mandou construir um Albergue ao lado da sua casa para dar abrigo e comida aos peregrinos e pobres passantes, à sua conta!
Até ao fim da sua vida, nunca deixou de cumprir as penitências espirituais e de frequentar as missas, em companhia da sua esposa Maria da Piedade e do rancho de filhos, se praticava judaísmo, era bem disfarçado, porque nunca mais foi molestado pela Santa inquisição.
PROCESSO DE GASPAR OLIVEIRA
NÍVEL DE DESCRIÇÃO
Documento composto Documento composto
CÓDIGO DE REFERÊNCIA
PT/TT/TSO-IE/021/00013
TIPO DE TÍTULO
Atribuído
DATAS DE PRODUÇÃO
1644-08-02 A data é certa a 1648-12-18 A data é certa
DIMENSÃO E SUPORTE
74 f.; papel
ÂMBITO E CONTEÚDO
Estatuto social: parte de cristão-novo
Idade: 25 anos
Crime/Acusação: judaísmo
Cargos, funções, actividades: curtidor
Naturalidade: Monsaraz
Morada: Monsaraz
Pai: Belchior Vaz, ferrador
Mãe: Catarina de Oliveira, cristã-velha
Estado civil: solteiro
Data da prisão: 08/08/1644
Sentença: auto-de-fé de 18/11/1646. Abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, sem remissão, instrução na fé, penas e penitências espirituais.
Por despacho de 18/12/1648, foi-lhe levantado o cárcere e tirado o hábito penitencial, comutados em penitências espirituais.
COTA ATUAL
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, proc. 13
IDIOMA E ESCRITA
Português
NOTAS
Nota ao elemento de informação "Âmbito e conteúdo": Os elementos informativos da genealogia encontram-se referidos no f. 23.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Fim
2 de 74 folhas do processo de Gaspar Oliveira



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