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sábado, 14 de novembro de 2020

A LENDA DA MOURA ENCANTADA E DO ALMOCREVE, MERCADOR


História, lendas e tradições da Vila de Monsaraz 

A Lenda da Moura Encantada e do Almocreve, Mercador de Monsaraz 

Rocha da moura encantada - Monsara

Quando o mestre guerreiro Azovel, (Azevel) caudilho cordovés, Lugar tenente de Texufine do Reino Mouro de Badajoz descia o Rio Guadiana com os seus 1.000 cavalos, nos anos de 1120, até à Vila de Monsaraz para reconhecimento da região e para proteger o transporte dos tributos, demorava-se cerca de oito dias nas grandiosas festas do fim do verão, com muita diversão, danças do ventre feitas por bonitas raparigas da região, tendo como figuras centrais Azovel e os seus homens, apresentados ao povo como heróis do Reino nas lutas contra os cristãos! 

Durante as festas, era normal o envolvimento das raparigas com os guerreiros, era considerada uma honra para as famílias por serem escolhidas pelos heróis, mas esta situação não era bem vista pelo governador que, achava uma indecência, ou mesmo um atentado à honra e à fé muçulmana, mas nada podia fazer contra o poderoso caudilho, por isso, enquanto duravam as festas, escondia  as três filhas mais velhas, numa casa perto do Moinho do Mendonça, para não assistirem às festas e ficarem salvas de eventuais tentações do mestre guerreiro! 

Azovel descia o vale do Rio Guadiana até Monsaraz com o seu exército, pelo menos uma vez no ano e informava sempre o governador com antecedência sobre o dia da chegada, porque era enviada uma embaixada de boas vindas ao seu encontro que, o recebia no lugar onde se encontra a atalaia de calvinos, perto da foz da Ribeira de Azevel com o Rio Guadiana, sendo, acompanhado até à Vila com grande pompa! 

No início do mês de Setembro do ano de 1121, Azovel chamou um dos seus homens de confiança, um espião e disse-lhe para mandar avisar o governador da Vila de Monsaraz que, na quinta-feira dia 8 de Setembro, estaria presente na Vila com os seus homens e para organizar a maior festa de sempre, com todas as raparigas da região e muita música e danças do ventre!

Como o Reino Mouro de Badajoz tinha espiões em todo o lado, também os tinha em Monsaraz, por isso, este espião, sabia todos os passos do governador e, feito manhoso, perguntou a Azovel se as filhas do governador também deviam ser convocadas para as Festas e para as danças do ventre? Como Azovel desconhecia a sua existência, ficou surpreendido e perguntou-lhe: Que idade tinham as meninas e quantas eram? Então, o espião contou-lhe que o governador tinha três filhas muito bonitas, com idades entre os quinze e os dezoito anos que escondia sempre durante as Festas de Monsaraz, porque achava que havia muita indecência e por receio do mestre guerreiro as cativar! 

Azovel sentiu-se traído na sua honra, porque o governador o considerava um selvagem, capaz de abusar das suas filhas, ficou revoltado e exclamou: Depois ajusto contas com ele lá em Monsaraz!

No lugar onde se encontravam, no castelo de Badajoz, estava presente um contra espião amigo do governador da Villa de Monsaraz que, entendeu que o ajuste de contas era para o matar e abusar das suas filhas e mandou, logo um homem de sua confiança a Monsaraz informar o governador sobre o que tinha ouvido e a dizer-lhe que corria perigo de morte!

Quando o governador recebeu a notícia ficou apavorado, sem saber o que fazer, não podia continuar a esconder as filhas e nem podia fugir com elas, porque sabia que estava controlado pela espionagem do Reino, então, chamou os seus homens, contou-lhe o que se passava e pediu-lhe ajuda! Todos apresentaram as suas ideias, uns sugeriram a fuga de Monsaraz, outros a morte do Azovel, mas nenhuma fazia sentido!

Estava a aproximar-se o dia da chegada de Azovel e o governador não encontrava nenhuma solução, na noite da véspera da chegada do mestre guerreiro, uma das amas das suas filhas pediu licença para falar com ele e disse-lhe que tinha o remédio para as salvar! O governador deu um salto da cadeira e pediu-lhe para falar! A ama disse-lhe que tinha de as encantar, ficavam paradas no tempo, mas salvas, mais tarde com uma boa recompensa, alguém as desencantava e seguiam a sua vida normal! 

O governador levou as mãos à cabeça, sentou-se e esteve algum tempo a pensar, depois fez um sinal afirmativo com a cabeça e mandou retirar a ama, ficou algumas horas a dar voltas à cabeça, sobre a chave do desencantamento, assim como, os prós e os contras! Aproximou-se a madrugada sem encontrar outra alternativa, dirigiu-se aos aposentos da esposa, pediu para o acompanhar e foram ter com as filhas, acordou-as, contou-lhe o dilema em que estavam metidos e disse-lhe que, depois de tantas ideias, só restava o seu encantamento! A esposa e as filhas ficaram surpreendidas, mas perante a sua explicação, concordaram com ele! Antes do encantamento, o governador disse-lhe a chave do desencantamento, deram um beijo em cada uma e ele fez o encantamento!

No dia seguinte, quinta-feira, como estava marcado, Azovel chegou à Vila de Monsaraz, muito calmo, durante os primeiros dois dias tratou de vários assuntos com o governador e não mostrou nenhuma hostilidade! 

No sábado, dia dez de Setembro, começaram as Festas, com muita música, danças do ventre e muita diversão, o Azovel não se manifestava sobre as filhas do governador, deixando-o confuso, mas nesse dia à noitinha, chamou-o e disse-lhe para trazer as filhas para a festa! O governador sabia que ele já sabia da sua existência e disse-lhe que era impossível, porque não estavam em Monsaraz! 

Azovel manteve-se calmo e disse-lhe: 

Azovel: Sim, eu sei que não estão em Monsaraz, estão escondidas de mim, por isso, manda buscá-las! 

Governador: Como lhe disse, não estão em Monsaraz, nem em lado nenhum!

Azovel: Não te estou a entender, tu sabes que eu sei que elas existem, agora dizes que não existem?

Governador: A verdade é que existiam, mas já não existem, porque fui avisado que corriam perigo nesta festa e tive de as encantar!

Azovel disse-lhe que não corriam perigo nenhum, porque nunca lhe tinha passado pela cabeça abusar delas, não era homem para fazer uma coisa dessas e essa acusação era uma desonra para ele e exigiu que o governador denunciasse o vil informador! 

O governador respondeu-lhe que nunca o denunciaria, porque era um amigo de infância e acreditava nele! A discussão tomou grandes proporções, Azovel ficou muito ofendido e desesperado, perdeu o controlo, agarrou na espada e num impulso cortou-lhe a cabeça!

No dia seguinte mostrou-se arrependido, mas já era tarde, nomeou outro governador, a seguir reuniu os seus homens, prepararam a partida antecipada e subiram o Rio Guadiana para o Reino de Badajoz, deixando grande tristeza em Monsaraz, porque devido a um mal entendido entre os espiões, morreu o governador e as suas filhas ficaram encantadas! 

Azovel continuou nas suas campanhas no combate contra os cristãos, mas  acabou por morrer na Mata de Montiel, no ano de 1143, às mãos do exército cristão comandado pelo notável cavaleiro espanhol Múnio Afonso, Alcaide-Mor de Toledo!

Quando a Vila de Monsaraz foi, definitivamente cristianizada, foi povoada por cristãos vindos do norte e começou a desenvolver-se em termos económicos, com a agro-pecuária e comércio, sendo criada uma rota comercial entre as principais Vilas e cidades do Alentejo, ligando Évora, Monsaraz. Moura, Serpa e Mértola, nesta última Vila eram transacionados os produtos que eram transportados desde o Algarve por barcos que subiam e desciam o Rio Guadiana, traziam sal, peixe seco, alfarroba, laranjas, amendoas, figos secos e outros produtos e, desciam carregados de cereais, queijos, peles, couros, panos, ferragens e outros! Nesta rota, os produtos eram transportados pelos burros dos Almocreves em caravanas, seguiam pelas ditas localidades onde descansavam e pernoitavam!

Alguns destes almocreves tinham casa e família na Vila de Monsaraz onde se demoravam um pouco mais, no final do mês de Outubro de 1312 saíram da cidade de Évora, por Monsaraz para pernoitarem e de madrugada seguirem viagem para Moura, os burros iam muito carregados e levaram mais tempo do que esperavam para chegara Monsaraz ainda cedo, mas quando se aproximavam já estava escuro, nesse momento, um burro da caravana, inesperadamente, deitou-se debaixo da carga! A caravana parou logo e, os almocreves foram ajudar a levantar o animal, tentaram tudo, mas sem sucesso! O almocreve dono do burro disse aos companheiros para seguirem caminho, porque já se avistava a Vila e ele ia esperar que o burro descansasse e depois seguia, ou mudava a carga para o burro de reserva, usado para durante as caminhadas levantarem um pouco os pés do chão, e deixava-o ali, depois de manhã os filhos iam buscá-lo e ele levava outro burro no lugar dele! 

Tanto insistiu que a caravana seguiu caminho e um ajudante levou os outros burros dele, ele ficou ali com a silhueta de Monsaraz à vista, comeu uma bucha e esperou quase duas horas e o burro continuava pregado ao chão, ele já desesperado, tirou-lhe a carga para o outro e pôs-se em marcha, o burro levantou-se muito fresquinho e começou a segui-los! O almocreve nem queria acreditar, pensou logo que era feitiçaria, mudou alguma carga e seguiu, mas para não dar a volta ao Telheiro, pensou em ir por uma vereda por onde podia chegar mais depressa a casa e meteu-se por ela! Quando estava a passar por uma rocha já perto da Vila, viu duas luzes muito brilhantes viradas na sua direção que o deixaram todo arrepiado, mas como não tinha por onde passar, continuou a andar e quando ia passando confirmou que era apenas um gato, mas comentou em voz alta: - Cheira-me a feitiçaria! Naquele momento, ouviu uma voz muito suave: - Boa noite almocreve! Mau mau, era só o que me faltava, já sei que hoje é noite delas! Comentou o almocreve! O gato continuou a falar e disse-lhe que se chamava Zaida: 

Zaida: Não, almocreve, não é feitiçaria! Espera lá, tenho de falar contigo! 

Almocreve: Era só o que me faltava, estou com pressa e não falo com gatos ou lá o que tu és!  

Zaida: Espera lá, não sou nenhum gato, sou uma moura encantada e se tu me desencantares podes ser o homem mais rico da Vila de Monsaraz e de toda a região! 

O almocreve ao ouvir que podia ficar rico, parou os burros e disse!  

Almocreve: Mas que conversa é essa? Tu pensas que eu acredito nessas lendas das mouras encantadas? Ainda acredito mais em feitiçarias do que nessas balelas! 

Zaida: Oh almocreve, se não acreditas, diz-me lá porque motivo o teu burro se deitou além atrás? Não percebes que foi obra minha para te separar da caravana? Por favor ouve-me, depois não és obrigado a desencantar-me, podes ir embora! 

Almocreve: Mau, mau, não estou a gostar disto, mas diz lá depressa o que queres, já estou muito atrasado e daqui a pouco estão aqui à minha procura! 

Zaida: Quero que me desencantes, mas não é só a mim, é também aqui às minhas irmãs! 

Naquele momento, surgiram por detrás dela, quatro olhinhos também muito brilhantes! 

Almocreve: Então e se eu aceitasse isso, o que tinha de fazer para as desencantar, diz depressa que eu não tenho a noite toda e tenho aqui os animais carregados!

A moura Zaida disse ao almocreve que os burros estavam aliviados da carga e contou-lhe que eram filhas do antigo governador da Vila de Monsaraz do tempo do Reino Mouro de Badajoz e o motivo porque tinham sido encantadas pelo pai, assim como, a chave do desencantamento, tinham de tomar banho no sangue de um cristão, era arranhado da cabeça até aos pés para o sangue jorrar para cima delas, depois tomavam o banho de sangue e em troca recebia o tesouro da sua família, constituído por uma barra de ouro, vinte moedas de ouro e muitas jóias! 

Almocreve: Isso é impossível de aceitar, se me tiram o sangue todo eu morro e depois para que serve ser um rico morto? Não, assim não aceito! 

Zaida: Espera lá almocreve, ainda não acabei de explicar! Dou-te a garantia que não morres, mas ficas muito mal, só até amanhã ao nascer do sol e não vais sentir nada a não ser a primeira arranhadela, depois adormeces e só acordas quando te der um raio de sol e ficas sem nenhuma mazela! Eu e as minhas irmãs seguimos para o reino de Córdova e tu depois de tudo estar calmo vais buscar o cofre do tesouro onde eu te disser! 

Almocreve: Não, não, eu não aceito uma coisa dessas! Sei lá se o que dizes é verdade, e se for, depois o que digo aos meus companheiros à minha família e ao povo de Monsaraz? 

Zaida: Ouve bem almocreve, se não fizermos tudo como te contei, o desencantamento não se realiza! Quando te encontrarem já estás bom,  porque não te vão procurar tão cedo neste lugar, procuram-te no caminho por onde circula a caravana, depois tens de dizer sempre que não sabes o que te aconteceu! E quanto à tua riqueza, dizes que foi de uns bons negócios!

Almocreve: Olha que se isso do tesouro fosse verdade, está aí uma boa justificação! Mas não, não acredito em ti! Cheira-me a feitiçaria e eu nisso não entro!

Zaida: É contigo, se queres ser um desgraçado de um pobre almocreve a vida toda, assim como, os teus filhos e netos, podes ir embora! Porém, se aceitares, com algumas moedas de ouro compras uma boa herdade e mudas-te para lá com a tua família e depois além de lavrador, tornas-te o mercador mais poderoso desta região, compras os cereais, vinho, azeite, peles, couros e gado e vais vendê-los pelo dinheiro que quiseres, de um pobre almocreve passas a ser um rico mercador!

Almocreve: Era bom de mais uma coisa dessas para mim, nunca tive sorte na vida, só me calha trabalho e mais trabalho! Custa-me acreditar nisso, mas se me garantes que não vou morrer e fico rico, eu vou aceitar! 

Zaida: Então, se aceitas, amanhã à noite podes vir buscar  o cofre do tesouro, aqui mesmo debaixo desta rocha, está atrás de uma pedra falsa! Agora, como já estamos atrasadas, vamos lá, tira a roupa, senta-te na rocha, descontrai e encosta-te! 

O almocreve assim fez e ficou nu, sentiu uma arranhadela forte, ainda gritou de dor, mas logo a seguir sentiu um bem estar geral e começou a sonhar que andava num lindo oásis com muita água e palmeiras, mas quando se ia aproximar de uma linda mulher que tomava banho, nas águas da cor do céu, acordou com o sol a dar-lhe na cara, levantou-se atarantado, vestiu-se e pensou que tinha adormecido e não tinha passado de um lindo sonho, percorreu o corpo com as mãos e não estava arranhado, nem havia sinais de sangue! 

Os burros andavam a pastar perto dali, correu para eles, pegou na corda do cabresto e seguiu para casa! Os companheiros e família andavam a procurá-lo desde madrugada  e quando lhe perguntaram o que tinha acontecido, a sua resposta foi, que não sabia, devia ter adormecido com o cansaço e só acordou quando o sol lhe deu nos olhos e, como não tinha outra resposta, acabou por os convencer! 

Na noite seguinte, aproveitando a escuridão, o almocreve levou um dos seus burros, pouco convencido, porque não tinha a certeza, se não teria sido um sonho, mas tinha de lá ir confirmar, deu a volta à rocha e começou a cavar e a pouco mais de meio metro de fundo, encontrou uma pedra que o deixou animado, continuou a cavar até conseguir levantar a pedra e lá estava o cofre! O almocreve quase desmaio com a emoção, faltava ver o que estava lá dentro e quando o abriu e viu o tesouro ficou paralisado, depois sentou-se na rocha no mesmo lugar onde tinha sido submetido ás arranhadelas das gatas, ou seja, do desencantamento das filhas do governador! 

O almocreve nunca mais acompanhou a caravana e, passados alguns meses, surgiu uma boa herdade à venda, foi falar com o Tabelião de Monsaraz para a comprar, mas recebeu grande risada na cara, como é que um pobre almocreve tem dinheiro para esta herdade? Exclamou o Tabelião!  O almocreve explicou que tinha feito bons negócios em Mértola e em Évora e tinha o dinheiro para comprar a herdade, por isso, era dele e entregou o dinheiro ao Tabelião que, com o dinheiro na mão, teve de engolir a sua arrogância e registar a herdade em nome do almocreve! 

A compra da herdade pelo almocreve espalhou-se por Monsaraz e arredores e toda a gente queria saber onde tinha arranjado o dinheiro, mas ele respondia sempre, que tinha sido de uns bons negócios que tinha feito, nem os outros almocreves entendiam, mas como foram aparecendo outras novidades esta foi caindo no esquecimento! 

O almocreve mudou-se com a família para a herdade, deixou acalmar os ânimos e depois começou a comprar gado de boa qualidade e a prosperar a olhos vistos, comprou mais herdades e a fazer grandes negócios, tornando-se o maior Mercador da região! 

Quando a Villa de Mourão foi a leilão, por 11.000 libras, porque o seu dono, D. Raimundo de Cardona, não pagou um empréstimo, no momento em que o mesmo decorria no alpendre da Igreja de Nossa Senhora do Tojal, os homens que estavam presentes diziam que ninguém a comprava por aquele valor, estava quase a terminar o leilão, chegou um cavaleiro, levantou a mão e rematou-a pelo valor pedido, esse cavaleiro, era o mercador de Monsaraz! 

Quando o  Rei D. Dinis, foi informado da compra da Vila de Mourão, pelo mercador de Monsaraz, exigiu que lhe a entregasse pelo mesmo valor e, ele entregou-a, imediatamente ao Rei! 

 Devido à localização de algumas das suas herdades, como a herdade do Mercador, quando foi prestar contas a Deus, ficou sepultado além Guadiana, na Vila de Mourão, mas o seu filho, um cavaleiro do Reino, mandou construir um sarcófago decorado com figuras e símbolos que contam a sua história de vida e levou-o para casa, ou seja, para a Igreja de Nossa Senhora da Lagoa, na Vila de Monsaraz, ficando conhecido como Mercador Martim Silvestre. 

As mouras desencantadas foram recebidas no Reino Mouro de Córdova, casaram, tiveram filhos e foram muito felizes, mas nunca esqueceram aquele almocreve que as desencantou em Monsaraz. 

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Fotografia: Isidro Pinto





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